Imagino-a sentada à minha espera, acendo a luz da
despensa, procuro sem precisar qualquer coisa desnecessária, sal, ou
açúcar, arroz, talvez polpa de tomate em lata, talvez nada,
pretextos, manias, esconderijo onde me sento, esperando que ela
Vou embora,
Volto a apagar a luz, saio da despensa, vou à
janela
Batem à porta, imagino-a a voltar, e finjo não
estar, como antes o tinha feito,
Da janela, sem a abrir, oiço o desalinho dos
automóveis caminhando pela calçada em paralelo que me fazem
recordar as noites de embriaguez quando as calçadas voavam
conjuntamente com o vento
Ora essa, não acredito!
Verdade, nós cambaleávamos porque os paralelos
voavam, saltitavam, e nós, tropeçávamos como tropeçavam as
minhocas antes de colocadas no anzol do desgosto, prendíamos grãos
de trigo no anzol, e atirávamos-lo para o quinteiro da vizinha,
depois, depois era só puxar o fio de pesca e uma galinha acabava de
nos sair na rifa,
Acreditas agora?
Vou-me embora, levantar âncoras e baixar velas,
E quando abria a janela subia até nós o intenso
cheiro dos resíduos sobrantes da noite passada, aquela onde os
paralelos saltitam e cambaleiam, nunca os percebi, nunca os quis
perceber, como também não percebo a existência de mim em calções
quando me olho no espelho da praia, e eu ando lá, e eu, eu
Não
Andar lá,
Eu morri numa manhã de Sábado, em frente ao Tejo,
em Novembro, e enquanto esperava que me transportassem..., perdi-me
numa feira de velharias, perdi-me dentro dos livros, dos cachimbos,
alguns mais idosos do que eu, e sinceramente, não me recordo de ter
passado pela porta da tempestade cinzenta, lembro-me de um velhíssimo
chapéu de soldado da ex-URSS, mas da porta
Via os vidros em pedaços, ouvia os estalido dos
candeeiros da rua contra os automóveis que circulavam, entre
paralelos inquietos, ressacados, de fome nos lábios, senti sobre os
ombros as cordas que seguram as roldanas que puxavam as lanças para
os guerreiros do Céu, e ouvia-a
Esperava por mim, eu, eu escondia-me dentro da
despensa, acendia a luz, fingia procurar coisas, insignificantes,
como quando não me apetece falar com ninguém invento buscas à
minha biblioteca à procura de livros que ainda não foram editados,
de livros que existem apenas dentro da cabeças
Deles e delas,
E eu,
Finjo,
Invento buscas, chamo os bombeiros, dou participação
na polícia, digo-o, invento, que desapareceu de casa de seu pai,
vestia gabardina negra (de noite) e calças de galga (polidas no
tempo), calçava umas sandálias em tiras de couro, e a última vez
que o viu
Diz que foi junto aos livros de Luiz Pacheco,
Ou
Não,
Minto,
A última vez que o vi foi junto dos livros de A.
Lobo Antunes, foi, tenho a certeza, e desde então, nunca mais
Apareceu,
Nunca mais
Me atormentou,
E nunca mais
Apareceu-me à janela quando a escuridão entra casa
dentro como flores tombadas pelas tempestades enceradas com gotas de
água e bolas de sabão, lá fora, o cigano com uma máquina
esquisita (fogareiro com sujidade) dá à manivela e aos poucos
Mãe
Sim filho
Olha
Pipocas,
E afinal ele ali tão perto, tão perto, perto
Que nunca acreditei que fosse ele, em gemidos
fingidos das janelas de vidro.
(ficção não revisto)
Francisco Luís Fontinha