segunda-feira, 19 de agosto de 2024

 

Apaguei as redes sociais, e não estou arrependido.

Cansei-me de saber se o meu vizinho gosta de gatos, se tem um automóvel de duas ou de quatro portas, ou pior,

Se a gaja (A) ou se a gaja (B) têm maminhas novas ou

se a parvalhona do 3º Esq. vai ao ginásio pela manhã

coisas fúteis,

Pior,

 

lá fora mário
longe da memória lisboa ressona esquecendo
quem perdeu o barco das duas ou se aquele que caminha
será atropelado ao amanhecer ou se o soldado
que falhou o degrau do eléctrico para a ajuda fode
ou ajuda ou não ajuda e se lisboa num vão de escadas
é isto
tão triste mário sobre o tejo um apito (Al Berto).

 

sobe este rio a saudade, e um pedaço de silêncio

amedronta a claridade do dia. coisas belas, objectos

dispersos e sobre a toalha da madrugada,

quase tudo, quando tudo, é quase nada.

 

e este rio é a melodia das árvores, quando acordam

e abraçam os socalcos, estão as tuas mãos

embrulhadas na maré. peço ao mar, um pouco de paciência,

 

e fé. sobe este rio a saudade, de nunca estar acompanhado,

de sempre, estar só.

 

e este rio é uma fotografia, é um parágrafo semeado

na terra fértil da poesia,

quando o só, é apenas um poeta sem nome e suicidado…

 

Enquanto saboreava um cigarro na esplanada do café (Ribadouro), depois de ter estado a ler um pouco, fui abordado por um senhor que acabava de se sentar na mesa ao lado para tomar o pequeno-almoço.

Cumprimenta-me educadamente, questiona-me o que andava a ler,

Ao que lhe respondo

Mia Couto, O Mapeador de Ausências,

E ele,

Que era de muito bom gosto.

Conversamos sobre viagens, ele, muito viajado, diz-me que tem como formação engenheiro e está no Douro, no Pinhão, onde tem um restaurante (a casa do escritor), a companheira é chefe de cozinha e é francesa.

Mostrei-lhe alguns do meus quadros que estão em exposição na Ribadouro, ele gostou e ficou o convite para eu ir à Casa do Escritor.

Irei certamente com todo o gosto.

 

coisa. coisas. objectos entre quatro paredes, e uma janela

se abre, se encerra,

a cada lunação de um sorriso. coisas,

mulheres despedidas, dançando sobre a mesa, livros depostos, mortos de cansaço

à mercê de uma fogueira. leio-te nos olhos

o último telegrama da noite.

esquece-me. stop.

coisas. objectos putrificados na mão de um leproso, nas pernas de um cego, em busca de prazer

abraçando uma árvore.

tantas coisas, objectos. stop.

 

Se dois corpos se perdem no espaço exíguo da madrugada

deixando abandonada a mesa circular com duas chávenas e duas cadeiras

como se houvesse um túnel cinzento com aberturas tão finas como os sonhos de ontem,

se de dois corpos

nas mãos do néon que ligou o interruptor da solidão

descerem as palavras de silêncio

em busca da plenitude montanha das árvores acabadas de morrer,

se dois corpos em formato de pássaro

sem asas

começarem a voar sobre os campos doirados das planícies verdejantes

é porque uma mulher de corpo emagrecido

desceu das nuvens trazendo olhos verdes e seios de algodão...

domingo, 18 de agosto de 2024

 

nem sei porque te escrevo, quando há muito estás morta, enterrada debaixo de uma figueira, nos confins do cu de judas. nem sei porque te escrevo todos os dias, quando és apenas pó

quando o inverno galgava a montanha, os lírios do teu cabelo assaltavam as searas madrinhas da lezíria; havia sempre um cacilheiro a foder,

outro cacilheiro. havia gemidos, delírios e depois

um rio de sémen subia à copa das árvores

e desenhava no céu,

os lábios de deus. são da cor do mar.

 

não sei porque te escrevo, mas parece ser o meu passatempo preferido, o meu destino, escrever-te. escrever cartas a mortos.

às vezes, escrevo ao meu pai.

às vezes, escrevo à minha mãe.

quase todas as vezes, escrevo-te. antes, colocava o que te escrevia dentro de um caixote. hoje, é tudo mais simples; ficam no disco rígido do portátil, até que um dia faça como nikolai gogol, quando lançou tudo para a fogueira,

e milhares de almas mortas voaram sobre o mar

e ainda hoje

dormem no jardim. não sei porque te escrevo, e depois

abro a janela,

mas nenhum tejo eu consigo ver, ouvir, dançar sobre as mãos trémulas

que seguram o sexo,

ele sabe que amanhã,

também ela,

estará morta.

que morram então os poetas,

as putas não,

que fiquem apenas as putas e os paneleiros,

no jardim,

viviam acácias e, no entanto,

cada vez que perguntava ao meu pai

porque choravam as acácias,

o meu pai respondia-me que um dia

e hoje não sei,

porque choravam as acácias da minha infância.

 

porque te escrevo, todas as noites, inventando desculpas de um qualquer trabalho,

quase ninguém,

junto à pequena pedra onde nos sentávamos, quando da lareira, a canção que ouvíamos, morria a cada faúlha lançada contra a lua. eu sabia e ela sabia, e todos sabíamos

que um dia,

iam morrer, e apenas eu,

só,

por aqui. sento-me em cima deste cacilheiro, e o que vejo. nada.

zero.

apenas um fluído viscoso sobre as pernas, a pele mergulha nas estrelas que descem da noite,

e sabíamos,

todos.

 

o teu corpo é uma mistura de silêncio, pó-de-arroz e talvez

um pouco de poesia. aquele toque que apenas os meus medos sabem decifrar quando acorda a noite nos teus seios,

e escrevo-te,

sabendo que sobre a cama esperam-me pedaços de coisas, objectos,

quase noite e espero que venha a morte e me leve,

pouco há a fazer por aqui,

a não ser,

olhar para o céu,

e um cacilheiro de luz mergulha nos meus dedos, sinto-me frágil, capaz de engolir uma bala, de prata, sinto-me capaz, de ficar aqui, só, na cozinha, a escrever,

coisas.

e tantas coisas…

 

amanhã será dia, e eu, talvez te escreva, novamente. e tantas coisas, quando pareço um sem-abrigo à procura de enganos e delírios, para que a noite não seja mais um complicado emaranhado de fios eléctricos, às vezes, muito doentes,

muito cansados.

 

e que também eles, te escrevem.

 

18/08/2024

 

Aos poucos despeço-me de tudo, quase não converso, quase dia sempre dentro de mim,

Aos poucos, escondo-me e ausento-me; não me apetece falar com as pessoas,

Qualquer coisa que eu diga, distorcem o que eu digo, inventam palavras, que não escrevi.

Aos poucos despeço-me de tudo e apenas leio. Muito.

Talvez aos poucos, enquanto me despeço, poise sobre mim um finíssimo fio de loucura.