domingo, 18 de agosto de 2024

 

nem sei porque te escrevo, quando há muito estás morta, enterrada debaixo de uma figueira, nos confins do cu de judas. nem sei porque te escrevo todos os dias, quando és apenas pó

quando o inverno galgava a montanha, os lírios do teu cabelo assaltavam as searas madrinhas da lezíria; havia sempre um cacilheiro a foder,

outro cacilheiro. havia gemidos, delírios e depois

um rio de sémen subia à copa das árvores

e desenhava no céu,

os lábios de deus. são da cor do mar.

 

não sei porque te escrevo, mas parece ser o meu passatempo preferido, o meu destino, escrever-te. escrever cartas a mortos.

às vezes, escrevo ao meu pai.

às vezes, escrevo à minha mãe.

quase todas as vezes, escrevo-te. antes, colocava o que te escrevia dentro de um caixote. hoje, é tudo mais simples; ficam no disco rígido do portátil, até que um dia faça como nikolai gogol, quando lançou tudo para a fogueira,

e milhares de almas mortas voaram sobre o mar

e ainda hoje

dormem no jardim. não sei porque te escrevo, e depois

abro a janela,

mas nenhum tejo eu consigo ver, ouvir, dançar sobre as mãos trémulas

que seguram o sexo,

ele sabe que amanhã,

também ela,

estará morta.

que morram então os poetas,

as putas não,

que fiquem apenas as putas e os paneleiros,

no jardim,

viviam acácias e, no entanto,

cada vez que perguntava ao meu pai

porque choravam as acácias,

o meu pai respondia-me que um dia

e hoje não sei,

porque choravam as acácias da minha infância.

 

porque te escrevo, todas as noites, inventando desculpas de um qualquer trabalho,

quase ninguém,

junto à pequena pedra onde nos sentávamos, quando da lareira, a canção que ouvíamos, morria a cada faúlha lançada contra a lua. eu sabia e ela sabia, e todos sabíamos

que um dia,

iam morrer, e apenas eu,

só,

por aqui. sento-me em cima deste cacilheiro, e o que vejo. nada.

zero.

apenas um fluído viscoso sobre as pernas, a pele mergulha nas estrelas que descem da noite,

e sabíamos,

todos.

 

o teu corpo é uma mistura de silêncio, pó-de-arroz e talvez

um pouco de poesia. aquele toque que apenas os meus medos sabem decifrar quando acorda a noite nos teus seios,

e escrevo-te,

sabendo que sobre a cama esperam-me pedaços de coisas, objectos,

quase noite e espero que venha a morte e me leve,

pouco há a fazer por aqui,

a não ser,

olhar para o céu,

e um cacilheiro de luz mergulha nos meus dedos, sinto-me frágil, capaz de engolir uma bala, de prata, sinto-me capaz, de ficar aqui, só, na cozinha, a escrever,

coisas.

e tantas coisas…

 

amanhã será dia, e eu, talvez te escreva, novamente. e tantas coisas, quando pareço um sem-abrigo à procura de enganos e delírios, para que a noite não seja mais um complicado emaranhado de fios eléctricos, às vezes, muito doentes,

muito cansados.

 

e que também eles, te escrevem.

 

18/08/2024

Sem comentários:

Enviar um comentário