nem sei porque te
escrevo, quando há muito estás morta, enterrada debaixo de uma figueira, nos
confins do cu de judas. nem sei porque te escrevo todos os dias, quando és
apenas pó
quando o inverno galgava
a montanha, os lírios do teu cabelo assaltavam as searas madrinhas da lezíria;
havia sempre um cacilheiro a foder,
outro cacilheiro. havia
gemidos, delírios e depois
um rio de sémen subia à
copa das árvores
e desenhava no céu,
os lábios de deus. são da
cor do mar.
não sei porque te
escrevo, mas parece ser o meu passatempo preferido, o meu destino, escrever-te.
escrever cartas a mortos.
às vezes, escrevo ao meu
pai.
às vezes, escrevo à minha
mãe.
quase todas as vezes,
escrevo-te. antes, colocava o que te escrevia dentro de um caixote. hoje, é
tudo mais simples; ficam no disco rígido do portátil, até que um dia faça como
nikolai gogol, quando lançou tudo para a fogueira,
e milhares de almas
mortas voaram sobre o mar
e ainda hoje
dormem no jardim. não sei
porque te escrevo, e depois
abro a janela,
mas nenhum tejo eu
consigo ver, ouvir, dançar sobre as mãos trémulas
que seguram o sexo,
ele sabe que amanhã,
também ela,
estará morta.
que morram então os
poetas,
as putas não,
que fiquem apenas as
putas e os paneleiros,
no jardim,
viviam acácias e, no
entanto,
cada vez que perguntava
ao meu pai
porque choravam as
acácias,
o meu pai respondia-me
que um dia
e hoje não sei,
porque choravam as
acácias da minha infância.
porque te escrevo, todas
as noites, inventando desculpas de um qualquer trabalho,
quase ninguém,
junto à pequena pedra
onde nos sentávamos, quando da lareira, a canção que ouvíamos, morria a cada
faúlha lançada contra a lua. eu sabia e ela sabia, e todos sabíamos
que um dia,
iam morrer, e apenas eu,
só,
por aqui. sento-me em
cima deste cacilheiro, e o que vejo. nada.
zero.
apenas um fluído viscoso
sobre as pernas, a pele mergulha nas estrelas que descem da noite,
e sabíamos,
todos.
o teu corpo é uma mistura
de silêncio, pó-de-arroz e talvez
um pouco de poesia.
aquele toque que apenas os meus medos sabem decifrar quando acorda a noite nos
teus seios,
e escrevo-te,
sabendo que sobre a cama
esperam-me pedaços de coisas, objectos,
quase noite e espero que
venha a morte e me leve,
pouco há a fazer por
aqui,
a não ser,
olhar para o céu,
e um cacilheiro de luz
mergulha nos meus dedos, sinto-me frágil, capaz de engolir uma bala, de prata,
sinto-me capaz, de ficar aqui, só, na cozinha, a escrever,
coisas.
e tantas coisas…
amanhã será dia, e eu,
talvez te escreva, novamente. e tantas coisas, quando pareço um sem-abrigo à
procura de enganos e delírios, para que a noite não seja mais um complicado
emaranhado de fios eléctricos, às vezes, muito doentes,
muito cansados.
e que também eles, te
escrevem.
18/08/2024
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