quarta-feira, 12 de abril de 2023

O livro da maldição

 Este livro

Que leio

E folheio

Que manuseio

Como se fosse mais um livro

Este livro

Onde escrevo

Onde durmo

Onde habito

Este livro

Deste livro

Do livro do meu viver.

 

Deste livro onde nasci

Neste livro onde cresci

E vivi

E brinquei…

Deste livro onde amei

E chorei

E gritei.

 

Deste livro a que chamam de vida

De viver

Deste livro de sofrer

Este livro

Entre muitos outros livros

Neste livro

Onde me sento

E escrevo

E olho o rio

E do rio vejo o mar

Deste livro de viver

Neste livro de amar.

 

Deste livro

Nos jardins junto à Torre

Dos barcos deste livro

Neste grande livro de partir

De correr

Deste livro de montanhas

De amores

De crianças sem asas

E de asas sem pássaros

Neste livro

Que seja deste livro

Que as minhas cinzas

Que das minhas asas

Se faça a vida

E se construa este livro.

 

 

 

Alijó, 12/04/2023

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 11 de abril de 2023

Multidão

 Acorrentados às frestas da manhã

O sono poisa na doce mão do transeunte ensonado

Vomita a fogueira da noite anterior

Da lareira onde arderam todas as palavras do poeta

E o poeta em dor

Sem o saber

Também ele acorrentado

Também ele ensonado

Também ele em lágrimas na fogueira da noite anterior

Senta-se na cadeira da insónia

E sonha

E pensa.

 

O que pensará o poeta acorrentado?

Que as noites são pedacinhos de pano

Em pequenas brincadeiras

Na algibeira do guarda-rios

Que enquanto olha para a ponte

Percebe que a multidão em fuga

Se dirige para o abismo?

 

Penso que não

Não pensando que a multidão

Toda ela

Toda a multidão

Se suicide nas mãos daquele Oceano.

 

Um cardume de sonhos

Viaja à velocidade da luz

Pensando que voa

Não voa

Porque enquanto pensava

O pensamento

Aquilo que o poeta pensava…

… morre quando a noite acorda.

 

E às vezes

Pensando que dormia no cacilheiro para a Trafaria

Acordava em Almada

Pensando que já era dia…

Quando ainda não era nada.

 

E para que pensas tu, poeta acorrentado?

Marinheiro das docas secas

Pedinte em decomposição

Quando do corpo putrefacto

Nasce uma gaivota de luz?

 

Não.

Não penses, cacilheiro dos lábios encarnados

Não penses

Não

Não bebas e não fumes e não fodas…

E claro

Não penses

Nem escrevas

O que pensas

Nem dias o que escrevas

E que pensas

Porque depois de pensares

Depois

Ai depois…

Não.

Não escrevas.

Não penses.

 

Multidão amiga

Pensante das madrugadas em flor

Consumidor de heroína

E de cigarros avulso

E de shots de liberdade

Junto ao rio

E se pensas

Um dia

Darás conta

Que os cacilheiros deixaram de ser os teus amigos…

Porque hoje os cacilheiros pensam

Porque hoje é terça-feira

E Lisboa é uma droga

É mulher

É bela

Muito bela

Mais bela que todas as belas das árvores da minha aldeia…

Porque pensa o poeta acorrentado?

Porque chora e pensa o poeta acorrentado

Filho da multidão

Irmão de Zeus

Irmão e pai

Dos que pensam

E daqueles que não pensam.

Amém.

 

A multidão pensante

Grita

Corta as correntes do sono

A multidão pensante

Pensa

Enquanto ele

O poeta acorrentado

Não pensa

Nem sabe o que pensa.

 

E os dias são as noites

Sãos os dias em que alguém pensa

Que quando regressar a noite

O pensamento se libertará da madrugada

E o poeta acorrentado

Enquanto bebe uísque…

… pensa

Que nunca pensou

Aquilo que pensa.

 

E se a multidão pensasse

E se o poeta acorrentado pertencesse à multidão

Os livros cresciam nos jardins

Como crescem as plantas de canábis

E crescem as almas que pensam.

Mas eu não gosto de pensar

Não gosto das palavras que escrevo

Nem dos desenhos que faço;

E enquanto espero sentado

Numa cadeira com tirinhas em plástico

Entretenho-me a contar as quadrículas

As brancas para o lado direito

As negras para o lado esquerdo…

… e os espaços entre elas…

Para os vizinhos que pensam

E que pensavam que nunca conseguiriam pensar.

 

O relógio morre.

A tua voz que pertencia aos meus pensamentos

Não pertence às vozes que pensam

Nem pensam as vozes a que pertencem…

E Deus?

O que pensará Deus!

O que pensará Deus de tudo isto?

Que sou louco

Porque desobedeço à multidão

E deixei de pensar?

E se eu pensar?

A multidão continuará junto a mim?

E claro,

E se Deus também ele,

Também eu,

Também o poeta engomado e acorrentado…

Não pensarem?

O que pensará o Diabo quando vai defecar

E percebe que o poeta acorrentado

É uma merda

Uma merda que pensa

Que fuma coisas

E bebe coisas

e…

… pensa

E que se fode o poeta que pensa.

 

 

 

Alijó, 11/04/2023

Francisco Luís Fontinha

Pensamento

 Às vezes

Penso

Às vezes penso que deveria não pensar

E no entanto

Penso

Penso porque sou apaixonado pelo mar

Às vezes penso…

… não

Não o deveria fazer

Pensar dá trabalho

… e já não me dá prazer

 

Às vezes penso

Em coisas estranhas

Não as que fumei e fumo

Outras coisas

Outros pensamentos, queres tu dizer?

Outras coisas que não são bem coisas

São pensamentos

De pequenas coisas

E penso

Penso tanto…

… que deveria deixar de pensar

 

Penso porque Deus é tão mau

Mas tão mau…

Que às vezes

Que às vezes até penso

Penso que não sou filho dele

Mas penso

Penso tanto

Que das vezes que penso

Não penso

Mas se não penso

Não existo

E desisto

De…

… de pensar

 

Mas penso

Quando me ergo

Penso

Penso se eu terei uma força superior a nove vírgula oito metros por segundo ao quadrado…

E penso

Penso tanto…

Se consegues vencer a gravidade, queres tu dizer?

Mas penso

Muito

Penso no gajo sentado em frente ao mar

Sentado numa cadeirinha de tirinhas plásticas

Com quadradinhos pincelados de negro e branco

Fuma e pensa

Pensa em quê, ele?

Que não

Não deveria pensar

Mas ele…

…, mas ele fuma e pensa

Como sabes que ele pensa?

Ou será que ele apenas fuma

Apenas não pensa

Ou apenas pensa

E não fuma

Será que ele pensa?

 

Às vezes

Penso

Às vezes penso que deveria não pensar

E no entanto

Penso

Penso

Penso

Penso que não deveria acordar

Pela manhã

e…

… e pensar.

 

 

 

Alijó, 11/04/2023

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 10 de abril de 2023

Luz

 

Não me importo

Não me importava que o Universo se extinguisse

Não me importo

Não me importava que o Sol deixasse de sorrir

Ou sonhar

Não me importo

Não me importava

Que tudo isto deixasse de existir…

Desde que ficasses nos meus braços

Enquanto a noite não se extinguisse

Não me importava

Nem me importo…

Desde que os teus lábios de mel

Poisassem nos meus lábios

E os teus olhos sejam a luz dos meus dias.

 

 

Francisco

10/04/2023

domingo, 9 de abril de 2023

A flor da liberdade

 Habitamos dentro deste labirinto

Frio e escuro

Onde desenhamos no corpo o desejo

Quando escrevemos no corpo

Cada silêncio que a noite alicerça sobre o mar,

 

Habitamos dentro deste labirinto

Sem janelas

Com portas e frestas

Quando chega a nós

A louca Primavera,

 

Quando regressam a nós

Os gladíolos de uma noite em tórrida paixão

E quando dos teus doces beijos

A tua mão distrai-se na minha boca

Insígnia da madrugada,

 

E podia terminar a noite

E recomeçar outra noite

Habitamos dentro deste labirinto de noites

Que apenas o prazer e o silêncio

Sabem fotografar depois do luar adormecer,

 

E dos teus olhos

Quando acordam as primeiras lágrimas da manhã

E num sorriso de luz

Uma criança te oferece a flor mais bela que o silêncio pode cultivar;

A flor da liberdade. A flor de amar.

 

 

 

Alijó, 09/04/2023

Francisco Luís Fontinha

Mar da Tranquilidade

 Podia beijar o Universo

Podia beijar todas as estrelas do Universo

E todas as flores do Universo

No entanto

Não trocava os teus lábios de mel

Quando a madrugada se deita na Primavera

Não trocava os teus lábios em desejo mar

Por todos os beijos do universo

 

E no entanto

Podia beijar o Universo

Todas as estrelas do Universo

E Deus

Deus que numa noite em desejo…

Criou todo o Universo

Para eu beijar

 

Podia beijar o Universo

Podia beijar todos os mares do Universo

E todas as árvores do Universo

E todos os peixes do Universo

E todos

Todos os pássaros do Universo

No entanto

Não trocava beijar os teus seios

Janela da maternidade

Mar da Tranquilidade

Nas noites em luar

Por tudo aquilo que o Universo me dá

 

Podia beijar o Universo

E todas as equações do Universo

Podia beijar o sol e a lua

Podia beijar o silêncio

E a paixão

Podia beijar o Universo

Todas as estrelas do Universo

E todos os buracos negros do Universo

Podia beijar tudo isso

Podia

No entanto

Prefiro beijar cada milímetro do teu corpo

Cada centímetro quadrado da tua pele em perfeito delírio

Podia

Mas sabes

Meu amor

Quero lá saber do Universo…

E dos beijos do Universo

Quando tu

Tu és o meu Universo.

 

 

 

 

Alijó, 09/04/2023

Francisco Luís Fontinha

Das minhas palavras

 Beijo cada milímetro quadrado da tua pele

Nocturna manhã das alegres tempestades em desejo

Beijo o teu corpo

Beijo a tua mão

E da janela que nos abraça antes de adormecer

Ouvem-se as canções e todos os silêncios do prazer

Ouvem-se as madrugadas

Ouvem-se os teus gemidos

Quando toco nos teus seios…

E uma flor de sémen levita em direcção ao mar

E uma flor de sémen se perde nas minhas palavras.

 

 

 

Alijó, 09/04/2023

Francisco Luís Fontinha