Acorrentados às frestas
da manhã
O sono poisa na doce mão
do transeunte ensonado
Vomita a fogueira da
noite anterior
Da lareira onde arderam
todas as palavras do poeta
E o poeta em dor
Sem o saber
Também ele acorrentado
Também ele ensonado
Também ele em lágrimas na
fogueira da noite anterior
Senta-se na cadeira da
insónia
E sonha
E pensa.
O que pensará o poeta
acorrentado?
Que as noites são
pedacinhos de pano
Em pequenas brincadeiras
Na algibeira do guarda-rios
Que enquanto olha para a
ponte
Percebe que a multidão em
fuga
Se dirige para o abismo?
Penso que não
Não pensando que a
multidão
Toda ela
Toda a multidão
Se suicide nas mãos
daquele Oceano.
Um cardume de sonhos
Viaja à velocidade da luz
Pensando que voa
Não voa
Porque enquanto pensava
O pensamento
Aquilo que o poeta
pensava…
… morre quando a noite
acorda.
E às vezes
Pensando que dormia no
cacilheiro para a Trafaria
Acordava em Almada
Pensando que já era dia…
Quando ainda não era
nada.
E para que pensas tu,
poeta acorrentado?
Marinheiro das docas
secas
Pedinte em decomposição
Quando do corpo
putrefacto
Nasce uma gaivota de luz?
Não.
Não penses, cacilheiro dos
lábios encarnados
Não penses
Não
Não bebas e não fumes e
não fodas…
E claro
Não penses
Nem escrevas
O que pensas
Nem dias o que escrevas
E que pensas
Porque depois de pensares
Depois
Ai depois…
Não.
Não escrevas.
Não penses.
Multidão amiga
Pensante das madrugadas
em flor
Consumidor de heroína
E de cigarros avulso
E de shots de liberdade
Junto ao rio
E se pensas
Um dia
Darás conta
Que os cacilheiros
deixaram de ser os teus amigos…
Porque hoje os
cacilheiros pensam
Porque hoje é terça-feira
E Lisboa é uma droga
É mulher
É bela
Muito bela
Mais bela que todas as
belas das árvores da minha aldeia…
Porque pensa o poeta
acorrentado?
Porque chora e pensa o poeta
acorrentado
Filho da multidão
Irmão de Zeus
Irmão e pai
Dos que pensam
E daqueles que não pensam.
Amém.
A multidão pensante
Grita
Corta as correntes do
sono
A multidão pensante
Pensa
Enquanto ele
O poeta acorrentado
Não pensa
Nem sabe o que pensa.
E os dias são as noites
Sãos os dias em que
alguém pensa
Que quando regressar a
noite
O pensamento se libertará
da madrugada
E o poeta acorrentado
Enquanto bebe uísque…
… pensa
Que nunca pensou
Aquilo que pensa.
E se a multidão pensasse
E se o poeta acorrentado
pertencesse à multidão
Os livros cresciam nos
jardins
Como crescem as plantas
de canábis
E crescem as almas que
pensam.
Mas eu não gosto de
pensar
Não gosto das palavras
que escrevo
Nem dos desenhos que
faço;
E enquanto espero sentado
Numa cadeira com tirinhas
em plástico
Entretenho-me a contar as
quadrículas
As brancas para o lado
direito
As negras para o lado
esquerdo…
… e os espaços entre elas…
Para os vizinhos que
pensam
E que pensavam que nunca conseguiriam
pensar.
O relógio morre.
A tua voz que pertencia
aos meus pensamentos
Não pertence às vozes que
pensam
Nem pensam as vozes a que
pertencem…
E Deus?
O que pensará Deus!
O que pensará Deus de
tudo isto?
Que sou louco
Porque desobedeço à
multidão
E deixei de pensar?
E se eu pensar?
A multidão continuará
junto a mim?
E claro,
E se Deus também ele,
Também eu,
Também o poeta engomado e
acorrentado…
Não pensarem?
O que pensará o Diabo
quando vai defecar
E percebe que o poeta
acorrentado
É uma merda
Uma merda que pensa
Que fuma coisas
E bebe coisas
e…
… pensa
E que se fode o poeta que
pensa.
Alijó, 11/04/2023
Francisco Luís Fontinha