sábado, 8 de abril de 2023

Tempo de te amar

 Não tenho tempo

Nem pressa que regresse o tempo

Não tenho pressa do tempo

Tão pouco que as palavras do tempo

Morram nas mãos do vento

Sem tempo.

 

Não tenho pressa

Nem tempo antes da pressa

Que no poema nasça e cresça

O delírio da loucura

Que entre tempos

O de ontem

E o de amanhã

Me venham dizer

Olhe… desculpe…

Não tivemos tempo

Não tenha o senhor pressa!

 

E se o tempo me convidar

Se eu tiver tempo

E não tiver pressa…

Talvez

Talvez amanhã consiga respirar

Talvez amanhã eu tenha tempo

Todo o tempo

O tempo de te amar.

 

 

Francisco

08/04/2023

Pobre menino

 Podia ser ontem

Enquanto as tuas mãos inchavam no sorriso da ausência

Das pobres janelas

E das portas

De todos os montes e vales

De todas as pedras

Em todas as árvores

Quando nem todos os pássaros

E podia ser ontem

Enquanto as tuas mãos mergulhavam nos lábios da geada

Entre vinhedos

Dos tristes milagres de Deus.

 

Acorrentado a este rio

De doirado silêncio

Quando descem sobre mim as nuvens tempestuosas

Que transportam o sangue derramado das tuas veias

Quando ainda ontem

As tuas mãos mergulhavam nas estrelas da noite

Embriaguez dos distantes carrosséis entre linhas

Dispersas sobre o mar.

 

Podia ser ontem

Mas ontem era dia de descanso

O derradeiro repouso

Quando pegas no último vinho

E o bebes

Veneno

Passaporte para o lunar destino.

 

E pobre

Este pobre menino

De poeta enforcado

A trapezista aposentado

Tão pobre

Tão…

Amado?

Quando ainda ontem

As tuas mãos eram límpidas como a Primavera

Como os gladíolos

Como as palavras quando se soltam dos lábios

Ressequidos

Mergulhados no ontem

Quando se fosse ontem…

Hoje

Tão pobre

De destino

Este pobre menino.

 

Podia ser ontem

E a ausência continuava na gabardine da insónia

Podia

E se fosse ontem

Uma chuva de lágrimas deixava sobre ti o silêncio

Quando ontem seria pouco

E de pouco em pouco

Aos teus lábios regressam as sanzalas

E os mabecos que ainda ontem

Brincavam junto a mim

Quando ainda ontem…

Desenhávamos canções no vento…

E corações na areia fina do Mussulo.

 

Podia ser ontem.

Não o foi porque dizem que a sexta-feira é dia de azar

Que todas as sextas-feiras um cadáver de sono

Acorda junto ao jardim

E ainda ontem andava por aí…

Em pequenas brincadeiras

Entre pequenos soluços

Quando ainda ontem

Das suas mãos

Recebia as palavras semeadas durante a noite.

 

E que seja hoje

E que seja amanhã

Porque não sendo ontem

Também não importa

Se foi ontem

Se poderá ser hoje

Ou qualquer dia

Mas se tivesse sido ontem…

Certamente levaria nas mãos toda a minha poesia.

 

 

 

Francisco

08/04/2023

Mãos da poesia

 Poucos recordam o poeta

Após a sua morte.

Poucos saberão que o poeta morreu

No dia em que ele não foi comprar cigarros

Ou na noite que ele não apareceu

Perante Deus

Para beber o seu último shot de uísque

E fumar o seu último cigarro.

 

Muitos poucos não saberão

Que o poeta está morto

Nasceu morto

E morto irá morrer

Nas mãos da poesia

Poesia morta

Abstracta

De luzes endiabradas nos lábios da madrugada

E se o poeta sofre

Não deve sofrer

Porque um poeta morto

Morto não sofre

E morto irá morrer.

 

Não gosto de mortos.

Dos que partiram

E daqueles que irão partir

E daqueles que nunca chegaram a partir

Antes de fugir.

O poeta morre no dia em que deixar de ir comprar cigarros

E na noite

Perante Deus

Não beber o seu último shot de desejo.

 

O poeta não sofre.

Os mortos não sofrem.

Quem sofre são as palavras

São as flores

São as nuvens e os pássaros

E o mar

E os barcos que dormem no mar;

Todos eles sofrem…

O poeta

O poeta não sabe sofrer.

 

O poeta apenas sabe escrever

O poeta morre enquanto escreve

Enquanto desenha na alvorada

Palavras

Palavras de morrer

Que o poeta morto

Não se cansa de escrever

Não se cansa de sofrer…

Mas o poeta não sofre

Porque o poeta está morto

E os mortos

Todos os mortos

Não sofrem

Não sabem sofrer.

 

O poeta se cansa

Das palavras

Dos dias entre palavras

Dos poemas em banho-maria

Do dia

Toda a poesia

A que morreu

E a que vai morrer

Nas mãos de um homem

De um louco homem

De um poeta louco

Poeta homem

Que sofre e está morto

Dentro de um cubo de vidro

Quando nasce o dia

Quando morre o dia

E o poeta

Louco poeta

Da louca poesia…

Nada.

Ninguém perceberá que o poeta morreu às mãos da poesia.

 

 

Francisco

08/04/2023

Incenso da vida

 Regressam as primeiras equações de sono

E se Deus quiser

Todas as fogueiras

Onde ardem todos os corpos

São

Equações mergulhadas em pequenas equações de sono

 

Revolta-se porque a tristeza aportou em sua mão

Não o faças gazela do mato

Milhafre enfartado…

Nunca peças o perdão

Quando a montanha desce a calçada

E um círculo de luz

Leva-te até às profundezas do Tejo

 

Podias ter-te abraçado a esse rio

Podias dormir nesse rio

Peixe carnívoro de todas as abelhas em flor

Que do salgado sangue

Mergulham na tua boca

Os restos de esperma da noite anterior

 

Às palavras

Abraçam-se os cadáveres de prata que a manhã vomita sobre a geada

Cavaleiro e cavaleira

Madre

Padre

Filho e filhos

(da puta e não só)

Às palavras

Das lápides de sono

Que tal como as equações…

A calçada hoje é um dormitório de espermas ressequidos pelo incenso da vida.

 

 

 

08/04/2023

Francisco 


 Antigamente, tinha sonhos e escrevia cartas a amigos…

Hoje,

Continuo a escrever cartas a amigos!

Rainha da noite

 Se morres

És um herói

Enquanto vives

És húmus

Esterco que trabalha a terra

 

Se estás vivo

Dizem que és um falhado

Incompreendido

Se está vivo

Dizem que és um inadaptado

Um espantalho que brinca num campo de trigo

 

Se morres és valente

Enquanto vives

Vives acreditando

Do que dizem

E escrevem

Sobre ti

Enquanto vives

Se morres és um herói

Principie

Ou rainha da noite

 

 

 

Francisco

08/04/2023

As feras

 As feras entre círculos de luz

Que descem as montanhas

As feras que a madrugada acorda

Sem perceber que da madrugada

Nada de bom virá

A não ser a terra queimada

E os sítios sem memória

 

As feras

As minhas feras

As feras que desenho antes de acordar o dia

As feras que a manhã levita sobre o mar

As feras entre círculos de luz

E barcos com voz rouca

Dos gritos

Das outras feras

 

As feras que a noite traz

Das feras que a noite mata

As feras assassinadas por mim

Quando as montanhas

Se sentam em frente ao rio

Para assistirem ao regresso das feras

Que as outras feras

As feras escondidas na ribeira

Gritam como os barcos

Às feras sem nome

Das feras que se dizem em solidão

 

 

 

Francisco

08/04/2023