terça-feira, 26 de março de 2013

Sótão da Insónia

Foto: A&M ART and Photos

Há um amontoado de espelhos e cobertores
que me levam até ti
há um corrimão onde poisamos as nossas mãos
e juntos
procuramos o sol,

Há um sótão
onde supostamente habita esse procurado sol
tem uma janela com pequeníssimos vidros de cetim
e uma fotografia para o mar
onde partem e regressam os barcos de brincar,

Leio os livros espalhados nesse sótão
onde às vezes adormecemos vaiados pelo cansaço da noite
mergulhados em palavras
e imagens
e sonhos suicidados dentro das tempestades do inferno,

silêncios dentro do sótão
fragmentos de porcelana abraçados a pedaços de cola
há uma jangada com velas de linho
que dentro do sótão pedem clemência ao vento traiçoeiro,

Há beijos disfarçados de solidão
e bocas em desejo
nos lábios da insónia...
há em mim coitados pássaros loucos
pássaros que só o nosso sótão consegue alimentar.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 25 de março de 2013

Paixão Geométrica

A&M ART and Photos

É da tua voz difusa que os traços de suor
acordam nas pétalas loucas que os poetas inventam
misturam-se nos teus lábios (sem que eu saiba se são doces ou amargos) sílabas
de água perdidas entre rochas e árvores de candeias
à luz semeada pelo diáfano silêncio dos desertos cansados da tua boca,

Há dias que não percebo esta solidão de areia
que o vento levita das pequenas junções das lajes de granito da eira de Carvalhais
e no entanto
acompanha-me o melódico sorriso do melro alegremente
penso eu (apaixonado) porque faz balançar os pinheiros dos sonhos,

Atravessas a cidade sobre o arame da saudade
e deixas cair sobre mim
as madeixas de papel que se desprendem do teu cabelo revoltado
com palavras misturas-lhe palavras em constante equilíbrio
e sofrimento de dor,

Inventas o rio para me alegrares
mas até isso me entristece como me entristecem as amarra de aço
que prendem os barcos apodrecidos
(também eles de aço)
a um cais de desassossego que tu dizes ser meu quando nasci das finas cordas que as gaivotas engolem,

Apetece-me subir ao andar superior onde habitam os gemidos da tua voz
que definem os traços de suor
que a pobre ardósia escreve construindo a geometria do amor
Dois quadrados podem ou não podem apaixonarem-se um pelo outro?
E dois triângulos de Luz?

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Como Andorinhas

foto: A&M ART and Photos

É vê-los partir como andorinhas envergonhadas, fogem, escondem-se como as ratazanas debaixo das pedras frágeis das calçadas de areia, inventam o sono, memorizam números como do primeiro beijo se tratasse, recordam as portas calafetadas e as janelas com os vidros estilhaçados pelos suspiros que o amor provoca nas primeiras horas da manhã, uma parede sem palavras escritas, mórbidamente suspensa numa corda de nylon, diz o povo que se enforcou, de uma casa, e do primeiro andar, uma varanda, uma grade em ferro, e imagens desfocadas, mortas, que nunca existiram na realidade, tocava o telefone, uma enorme e velha campainha como o sono quando demorava a regressar, aproveitava entre toque para contar os carneiros que deambulavam no tecto do quarto, e quase sempre
Faltam-me dois carneiros, E a esposa dizia-lhe Deixa lá marido, o que são dois carneiros?
Tirando a lã, nada,
E antes de pegar no auscultador mais pesado do que um saco de cimento, queixava-se da dor sobre os ombros, e mentalmente não se recordava de qualquer esforço extra, mas claro, como ele às vezes fazia menção de dizer, A idade avança e os meus ossos já precisavam de reforma, e de tempo, e de melancolia, e das noites, e avariadas quando entravam porta adentro um esquadrão de
Ratazanas?
E tirando a lã, nada,
Não, claro que não,
Pegava no auscultador e do outro lado da ardósia parede de gesso, ouvia a voz mais pequena quase do mundo, mas neste caso, a voz mais pequena da aldeia dos macacos, Tou, Tio?
Sim, Sou o Francisco!
Saudades tio, saudades...
Deve estar a precisar de dinheiro, só me conhece para isto, este miserável,
Diz lá rapaz, alguns problema?
(É vê-los partir como andorinhas envergonhadas, fogem, escondem-se como as ratazanas debaixo das pedras frágeis das calçadas de areia, inventam o sono, memorizam números como do primeiro beijo se tratasse, recordam as portas calafetadas e as janelas com os vidros estilhaçados pelos suspiros que o amor provoca nas primeiras horas da manhã, uma parede sem palavras escritas, mórbidamente suspensa numa corda de nylon, diz o povo que se enforcou, de uma casa, e do primeiro andar, uma varanda)
Era só para o ouvir, respondia-lhe ele, e claro, pensativamente vinha a desconfiança, porque ninguém telefona a outro alguém, apenas para o ouvir, ou
Saudades da sua voz,
(Chaleiro)
Ou,
Ratazanas?
E tirando a lã, nada,
Não, claro que não,
Saudades, claro, também eu, do granito clandestino de que eram construídas as clarabóias com pedaços de cartão reciclado, e quando alguém batia à porta, ele
Tou?
Sou eu, tio Francisco!
Agora este deve pensar que sou o novo Papa, Sou Francisco, claro, mas um simples Francisco, menos do que as flores e os pássaros e as pontes, menos ainda do que as
Ratazanas?
Claro, sim, talvez,
É vê-los partir como andorinhas envergonhadas, fogem, escondem-se como as ratazanas debaixo das pedras frágeis das calçadas de areia, inventam o sono, sinto nas minhas coxas calcinadas pelo odor do primeiro beijo as nuvens de porcelana que Deuz se esqueceu sobre a mesa da cozinha, sentada, não sei, o que fazer
Talvez, claro, quem sabe,
Porque não me amas, e confesso que não sei responder-te, não sei, tal como tu não consegues perceber a razão do teu sobrinho segredar-te que tem
Saudades?
Sim, claro, talvez,
Não sei,
Tou? Sou eu tio Francisco, Diz lá rapaz?
Digo,
Quem pode ter saudades da voz de um homem velho, cansado, com duzentos e seis ossos pesados como chumbo, húmidos, pronto no cais de embarque, quando ele tem a certeza que não regressará mais
Aquela manhã de Novembro,
Aquele sonho de açúcar,
Ou,
O toque do telefone, Saudades da tua voz, tio Francisco, nada mais...
Ou,
Saudades de voar, querido sobrinho.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Cachimbos de Prata

pag. 465 (poema de Francisco Luís Fontinha – Cachimbos de Prata)


Um pedacinho de névoa
entranha-se na tua doce boca vestida de alecrim
e das algibeiras insónias madrugadas
acordam as imagens fictícias do orvalho incendiado pelo incenso doirado
olho-te vagarosamente no espelho mental das árvores danificadas
pelos ventos e tormentos que em ti navegam
perdidamente como uma gota de água
esquecida num banco de pedra debaixo de um plátano tresmalhado
e doente apaixonado
pelos orifícios indistintos do velho jardim
um pedacinho de névoa
entre os teus lábios narcisos e a tua língua rosa com pétalas de amor,

Oiço a tua mão voraz desenhando letras nocturnas
em nuvens de seda
oiço os teus gemidos transversais contra as paredes do velhíssimo relógio
suspenso no peito cansado e triste do homem das sete patas de madeira oca
oiço a voz rouca de um cachimbo de prata
saltitando
dançando
nas eiras graníticas das canções que a infância comeu
em pequenos torrões de açúcar
misturados com sílabas de céu estrelado
e sandes de marmelada
ao pequeno-almoço,

Pedia-te sossego e tu desaparecias de mim
dançando
saltitando
como um cachimbo de pedra adormecida pelas vagas contra os rochedos
dormíamos dentro dos ouvidos da praia
e antes de encerrarmos definitivamente os cortinados da Aurora Boreal
entrava em nós o Rossio vestido de gente
com mãos de noite
ouvíamos o rio nas catacumbas do amor
a pintar estrelas de luz
e luas de papel
e eu sabia que tu nunca mais irias regressar das salivas amargas do primeiro amor...


@Francisco Luís Fontinha