|
foto: A&M ART and Photos
|
É vê-los partir como andorinhas envergonhadas,
fogem, escondem-se como as ratazanas debaixo das pedras frágeis das
calçadas de areia, inventam o sono, memorizam números como do
primeiro beijo se tratasse, recordam as portas calafetadas e as
janelas com os vidros estilhaçados pelos suspiros que o amor provoca
nas primeiras horas da manhã, uma parede sem palavras escritas,
mórbidamente suspensa numa corda de nylon, diz o povo que se
enforcou, de uma casa, e do primeiro andar, uma varanda, uma grade em
ferro, e imagens desfocadas, mortas, que nunca existiram na
realidade, tocava o telefone, uma enorme e velha campainha como o
sono quando demorava a regressar, aproveitava entre toque para contar
os carneiros que deambulavam no tecto do quarto, e quase sempre
Faltam-me dois carneiros, E a esposa dizia-lhe Deixa
lá marido, o que são dois carneiros?
Tirando a lã, nada,
E antes de pegar no auscultador mais pesado do que
um saco de cimento, queixava-se da dor sobre os ombros, e mentalmente
não se recordava de qualquer esforço extra, mas claro, como ele às
vezes fazia menção de dizer, A idade avança e os meus ossos já
precisavam de reforma, e de tempo, e de melancolia, e das noites, e
avariadas quando entravam porta adentro um esquadrão de
Ratazanas?
E tirando a lã, nada,
Não, claro que não,
Pegava no auscultador e do outro lado da ardósia
parede de gesso, ouvia a voz mais pequena quase do mundo, mas neste
caso, a voz mais pequena da aldeia dos macacos, Tou, Tio?
Sim, Sou o Francisco!
Saudades tio, saudades...
Deve estar a precisar de dinheiro, só me conhece
para isto, este miserável,
Diz lá rapaz, alguns problema?
(É vê-los partir como andorinhas envergonhadas,
fogem, escondem-se como as ratazanas debaixo das pedras frágeis das
calçadas de areia, inventam o sono, memorizam números como do
primeiro beijo se tratasse, recordam as portas calafetadas e as
janelas com os vidros estilhaçados pelos suspiros que o amor provoca
nas primeiras horas da manhã, uma parede sem palavras escritas,
mórbidamente suspensa numa corda de nylon, diz o povo que se
enforcou, de uma casa, e do primeiro andar, uma varanda)
Era só para o ouvir, respondia-lhe ele, e claro,
pensativamente vinha a desconfiança, porque ninguém telefona a
outro alguém, apenas para o ouvir, ou
Saudades da sua voz,
(Chaleiro)
Ou,
Ratazanas?
E tirando a lã, nada,
Não, claro que não,
Saudades, claro, também eu, do granito clandestino
de que eram construídas as clarabóias com pedaços de cartão
reciclado, e quando alguém batia à porta, ele
Tou?
Sou eu, tio Francisco!
Agora este deve pensar que sou o novo Papa, Sou
Francisco, claro, mas um simples Francisco, menos do que as flores e
os pássaros e as pontes, menos ainda do que as
Ratazanas?
Claro, sim, talvez,
É vê-los partir como andorinhas envergonhadas,
fogem, escondem-se como as ratazanas debaixo das pedras frágeis das
calçadas de areia, inventam o sono, sinto nas minhas coxas
calcinadas pelo odor do primeiro beijo as nuvens de porcelana que
Deuz se esqueceu sobre a mesa da cozinha, sentada, não sei, o que
fazer
Talvez, claro, quem sabe,
Porque não me amas, e confesso que não sei
responder-te, não sei, tal como tu não consegues perceber a razão
do teu sobrinho segredar-te que tem
Saudades?
Sim, claro, talvez,
Não sei,
Tou? Sou eu tio Francisco, Diz lá rapaz?
Digo,
Quem pode ter saudades da voz de um homem velho,
cansado, com duzentos e seis ossos pesados como chumbo, húmidos,
pronto no cais de embarque, quando ele tem a certeza que não
regressará mais
Aquela manhã de Novembro,
Aquele sonho de açúcar,
Ou,
O toque do telefone, Saudades da tua voz, tio
Francisco, nada mais...
Ou,
Saudades de voar, querido sobrinho.
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha