À sua volta, poisava uma
fina pelicula de silêncio, dentro de um cubo de vidro, habitava a nuvem de
saudade que ao longo dos anos se tinha deixado adormecer, sem perceber que
entre os socalcos e as amendoeiras, nas terras profundas do desejo, uma pomba
desejava crescer e voar.
Chamavam-na de liberdade.
Trazia na algibeira o
eterno beijo que todas as noites se sentava junto à lareira, mais parecendo um
cadáver em movimento, rumo às planícies desconhecidas que jaziam sobre uma
pequena folha em papel.
Havia uma porta com
acesso ao quarto escuro, aposento que apenas ela conseguia entrar e por lá
ficava até que a morte a chamava, ensonada, muito ensonada, regressava ao
jardim depois de um longo passeio pelas montanhas de algodão.
Sempre que não precisava
de chuva, esta vinha-o visitar, e ele, de mau-humor, porque odiava a chuva,
vestia a gabardine, calçava as galochas e ia brincar para a rua, aos poucos,
entre sombras, descia as ténues luzes do degredo, onde crianças e mulheres,
famintas, desenhava no pavimento do medo a palavra
Musseque.
Nada à sua volta existia
apenas por existir e, no entanto, sentia saudades dos tempos de fome que
passara lá do outro lado do rio.
Assim seja, gesticulava
para as ardósias cansadas da escola.
A tabuada escrevia-se nas
paredes até casa, mas quando chegava a vez da tabuada do seis, bem, melhor não
dizer anda,
Fazia contas mentalmente
até que descobriu as séries se algo se repetia,
Deixamos as séries, pois
era na poesia que ela era campeã de sofrimento e dor, até ao dia que verificou
que dentro do poema habitava o beijo mais belo da aldeia.
Tínhamos acabado de
passar a linha do Equador e, o puto empoleirado na grade do navio, acreditava
ver com os próprios olhos essa mesma linha, mas ainda hoje não entende a razão
de ser apenas simbólica, pois os avós e os pais falavam nessa dita linha e,
dizem
Em cada rua que atravessa,
olha fixamente para o chão triste e, linha nenhuma, ao que conclui que tanto os
avós como os pais lhe mentiram, pois, essa linha não existe.
Escreveu um dia, ela, que
se dividisse o tempo por beijos, certamente no dia seguinte, obteria desejos e,
por sua vez, se calculasse a raiz quadrada do desejo, obteria a saudade, matemática
esquisita, esta, a dos beijos e a dos desejos e a dos abraços.
Ela desconhecia que tinha
no jardim a estátua do capitão de mar e guerra e tio
Deus o salve, tio João
Alecrim.
Comandava um paquete
decadente e ensonado, que para atravessar o rio, precisava na melhor das hipóteses
de cerca de cinco dias, pois há quem diga que a velocidade dele é de zero vírgula
zero cinquenta nós por dia.
À noite, quando acendia a
candeia, regressava através da janela uma lâmina de tristeza que a acompanhava
desde que percebeu que o menino nunca mais se sentaria no seu colo, ele cresceu,
tornou-se mendigo e hoje deambula pelas ruas da cidade à procura de lábios
doces e rebuçados.
E, dizem
Amanhã, pela madrugada,
vais perceber o significado das séries e da repetição de termos.
Uma tragédia.
Uma tragédia anunciada, a
guerra das flores e das lápides adormecidas.
As flores em tua mão
Há flores cansadas
Que habitam na tua mão,
Há lápides envergonhadas,
Envergonhadas desta
canção.
Há corpos, ossos e,
lábios em papel,
Há palavras que se
semeiam no chão,
Há jardins e torres de
Babel,
E há as palavras do
coração.
Há as flores da tua mão,
As mesmas que iluminaram
a minha vida sentida,
São flores e são canção,
São versos perdidos na
madrugada.
Há uma lágrima em
despedida,
Há uma lágrima em
demandada.
Hoje faz-se passear pelas
ruelas da saudade de bicicleta pela mão, no ombro esquerdo leva a pomba que
desde miúda apelidou de vergonha e, há quem diga que irá permanecer por estas
bandas por muitos e longos anos.
Um dia deixará de chover,
acredita ele enquanto puxa de um cigarro…
Francisco Luís Fontinha
Alijó, 31/10/2021
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