domingo, 31 de outubro de 2021

As flores em tua mão

 

À sua volta, poisava uma fina pelicula de silêncio, dentro de um cubo de vidro, habitava a nuvem de saudade que ao longo dos anos se tinha deixado adormecer, sem perceber que entre os socalcos e as amendoeiras, nas terras profundas do desejo, uma pomba desejava crescer e voar.

Chamavam-na de liberdade.

Trazia na algibeira o eterno beijo que todas as noites se sentava junto à lareira, mais parecendo um cadáver em movimento, rumo às planícies desconhecidas que jaziam sobre uma pequena folha em papel.

Havia uma porta com acesso ao quarto escuro, aposento que apenas ela conseguia entrar e por lá ficava até que a morte a chamava, ensonada, muito ensonada, regressava ao jardim depois de um longo passeio pelas montanhas de algodão.

Sempre que não precisava de chuva, esta vinha-o visitar, e ele, de mau-humor, porque odiava a chuva, vestia a gabardine, calçava as galochas e ia brincar para a rua, aos poucos, entre sombras, descia as ténues luzes do degredo, onde crianças e mulheres, famintas, desenhava no pavimento do medo a palavra

Musseque.

Nada à sua volta existia apenas por existir e, no entanto, sentia saudades dos tempos de fome que passara lá do outro lado do rio.

Assim seja, gesticulava para as ardósias cansadas da escola.

A tabuada escrevia-se nas paredes até casa, mas quando chegava a vez da tabuada do seis, bem, melhor não dizer anda,

Fazia contas mentalmente até que descobriu as séries se algo se repetia,

Deixamos as séries, pois era na poesia que ela era campeã de sofrimento e dor, até ao dia que verificou que dentro do poema habitava o beijo mais belo da aldeia.

Tínhamos acabado de passar a linha do Equador e, o puto empoleirado na grade do navio, acreditava ver com os próprios olhos essa mesma linha, mas ainda hoje não entende a razão de ser apenas simbólica, pois os avós e os pais falavam nessa dita linha e, dizem

Em cada rua que atravessa, olha fixamente para o chão triste e, linha nenhuma, ao que conclui que tanto os avós como os pais lhe mentiram, pois, essa linha não existe.

Escreveu um dia, ela, que se dividisse o tempo por beijos, certamente no dia seguinte, obteria desejos e, por sua vez, se calculasse a raiz quadrada do desejo, obteria a saudade, matemática esquisita, esta, a dos beijos e a dos desejos e a dos abraços.

Ela desconhecia que tinha no jardim a estátua do capitão de mar e guerra e tio

Deus o salve, tio João Alecrim.

Comandava um paquete decadente e ensonado, que para atravessar o rio, precisava na melhor das hipóteses de cerca de cinco dias, pois há quem diga que a velocidade dele é de zero vírgula zero cinquenta nós por dia.

À noite, quando acendia a candeia, regressava através da janela uma lâmina de tristeza que a acompanhava desde que percebeu que o menino nunca mais se sentaria no seu colo, ele cresceu, tornou-se mendigo e hoje deambula pelas ruas da cidade à procura de lábios doces e rebuçados.

E, dizem

Amanhã, pela madrugada, vais perceber o significado das séries e da repetição de termos.

Uma tragédia.

Uma tragédia anunciada, a guerra das flores e das lápides adormecidas.

 

 

As flores em tua mão

 

Há flores cansadas

Que habitam na tua mão,

Há lápides envergonhadas,

Envergonhadas desta canção.

 

Há corpos, ossos e, lábios em papel,

Há palavras que se semeiam no chão,

Há jardins e torres de Babel,

E há as palavras do coração.

 

Há as flores da tua mão,

As mesmas que iluminaram a minha vida sentida,

São flores e são canção,

 

São versos perdidos na madrugada.

Há uma lágrima em despedida,

Há uma lágrima em demandada.

 

 

Hoje faz-se passear pelas ruelas da saudade de bicicleta pela mão, no ombro esquerdo leva a pomba que desde miúda apelidou de vergonha e, há quem diga que irá permanecer por estas bandas por muitos e longos anos.

Um dia deixará de chover, acredita ele enquanto puxa de um cigarro…

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 31/10/2021

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