quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Os lábios do poema

 

São doces, os lábios do poema.

São as palavras, nos lábios do poema,

Quando o mar entra pela janela.

Lá fora, gente dispersa, contínua, como a água,

A mesma água que jorra dos lábios do poema.

São estes beijos, meu amor,

Que travestidos de palavras,

Vivem nos teus lábios – o poema;

Escrevo-te enquanto tu, vestida de flor,

Danças na sombra, a mesma sombra, que beija os lábios do poema.

Percebo que as roldanas do amanhecer, antes de oleadas,

Estejam perras, doentes e cansadas,

Mas, durante a tarde, as roldanas que vivem nos lábios do poema,

Despem-se; vejo-as banharem-se no rio onde brincam os lábios do poema.

O ciúme. A paixão dos versos envenenados pelos lábios do maldito poema,

Dançam, como tu, nos lábios do poema.

Durmo docemente nas tuas asas, andorinha Primavera,

E, o amor,

E o amor nos lábios dela,

Os mesmos lábios que dançam nos lábios do poema.

É hoje, a derradeira manhã adormecida,

Despida,

Nua e envelhecida,

É hoje, meu amor,

Que todas as palavras são beijos,

Os beijos dos lábios do poema.

 

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó, 19/11/2020

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Eu COVID – a obsessão

 

Ouvi hoje (11-11-2020) na TSF o grito de alerta da Sociedade Portuguesa de Oncologia. Lamentável. Milhares de cancros não estão a ser diagnosticados devido à obsessão por parte das autoridades com a COVID-19.

Não se fazem rastreios, tratam-se mal os doentes oncológicos, e afins.

Como filho de doentes oncológicos, mortos no espaço de quatro anos, também me apetece gritar. Conheço, infelizmente o drama destes doentes e suas famílias. Horrível, apenas isso.

A COVID-19 existe, mas é apenas mais um vírus que vamos ter de aprender, a partir de agora, a conviver com ele.

Não abandonem os doentes oncológicos.

 

 

Francisco Luís Fontinha

11/11/2020

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Todas as cerejas

 

As cerejas serão sempre cerejas na tua boca.

Os lábios das cerejas, na tua boca, teus lábios, serão sempre o nascer do sol.

Das palavras, às cerejas, há sempre um poema envenenado,

Uma canção de espuma,

Na mão sardenta de um condenado.

Há sempre um drogado,

Entre poemas e textos de escrever,

As cerejas, quando doces, são frutos de querer,

São melodias do narciso,

Voando em direcção ao mar.

Depois, no final da tarde, todas as palavras se suicidam,

Dormem na boca das cerejas,

Depois, o beijo, das cerejas,

Parecendo o acordar dos pássaros embainhados pelo sono da Primavera.

Tenho em mim, na minha mão, as cerejas de beijar,

Tenho na minha boca as cerejas do desejo,

Quando no oceano todas as cerejas, entre palavras, se agitam como moças parvas,

Cidades entre esquinas,

Luzes de caminhar de encontro às esplanadas de brincar e,

As outras cerejas,

As cerejas de acariciar,

Pintam na clarabóia da insónia,

As planícies de amar.

Amam-se as cerejas.

Brotam da terra as cerejas mortas,

Caducas,

Velhas,

Onde alguém desenha hortas,

Árvores em papel… e,

Janelas abertas.

As cerejas, meu amor,

São o silêncio da bruma,

São barcaças,

São pingos de espuma;

Um telegrama,

Que não me grama,

Coça os tomates,

Puxa de um cigarro invisível,

Lê na tua mão, meu amor,

Que todos os restaurantes faliram,

Morreram de sono,

Pumba.

Fim.

Incrível,

As aldeias de xisto,

Cansadas,

Cansadas de tudo e de nada,

Visto.

Está visto.

Porta cerrada,

Número de polícia trocado,

O velho,

O farrapo,

O vagabundo.

Atravesso a calçada,

Limito-me a observar,

Os pombos que cagam,

Os homens que cagam nos pombos e,

Meu amor, as cerejas que esqueci na tua boca.

Alimento-me.

Sou um sem-abrigo com ordem de recolher;

Mas nunca, nunca serei um homem de obedecer.

Ponto.

Vivam as cerejas,

Porque de tão belas,

São doces,

São mulheres,

São donzelas.

E as abelhas?

Que se fodam as abelhas.

E as cerejas de comer.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 09/11/2020