quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Sonhar


Perdido neste sótão da saudade

Misturado nos sonhos que fervilham nas palavras inventadas

Perdido neste cubículo sonolento

Das catacumbas madrugadas

Abraçado ao vento

Sem lamento

Quando lá fora há um rio em lágrimas

Que me procura

Com ternura

E esquecendo a vaidade

Perdido neste inferno sem morada

Este sótão… este sótão que se esconde na alvorada,

 

Este sótão cansado

Como um esqueleto de húmus invisível na tempestade

Perdido, eu, nesse teu coração de migalhas

Sofrendo porque vivendo sofrendo

Não sei viver

Sofrendo porque vivendo sofrendo

Não sei amar

Escrever

Desenhar

Ser o mar

Dançando ao pôr-do-sol

Sem perceber que estou a sonhar…

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó

Quarta-feira, 21 de Outubro de 2015

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Sem cabeça


O inferno estava próximo, do corredor entranhava-se no meu corpo o cheiro a enxofre e a gajas nuas,

Menos tabaco nesses cigarros…, gajas no inferno?

E canteiros recheados de malmequeres, crisântemos e orquídeas selvagens, imperfeito, o vidro estilhaçava-se, ficou sem cabeça, ficou sem coração, e ficou com o medo misturado nos óbitos grãos de areia, ainda hoje acredito que um objecto depois de crucificado… permaneça o mesmo objecto, mas com formas e cheiros e desenhos…

Menos tabaco, amigo, menos tabaco,

Diferentes, tornam-se ausentes, tornam-se miúdos brincando no musseque, os charcos, o capim descendo a rabina, o miúdo do bibe acreditava na liberdade, e é tão difícil ser-se livre nesse País, tão difícil meu pai, tu sabes

Menos tabaco, menos,

Tu sabes que vivi encerrado entre quatro paredes invisíveis, tu sabes que vivi entre três janelas sem vista para o mar, mas sentia-o no meu quarto,

Lembras-te, filho? Os Domingos junto ao Porto e os barcos pareciam cancelas suspensas na madrugada, lembras-te, filho? Os Coqueiros, as gaivotas comendo os Coqueiros, e tudo apenas imagens a preto e branco do meu imaginário, porque, meu filho

Sim, pai?

Lembras-te do Mussulo?

Sim, pai, sim… a areia recheada de lençóis brancos, a poeira do cansaço vomitando languidas lâminas de azoto, e depois, e depois regressava a noite, dormias, sonhavas, gritavas… e eu, eu sem dormir, comer,

Ao longe, meu amigo, ao longe o inferno, as gajas, as nuas gajas junto à porta do inferno,

Louco, menos tabaco nesses cigarros, menos,

Ao longe a agonia do fim de tarde agachado em cima de um telhado em zinco abraçado a um livro, não sabia ler ainda, mas lia-o, absorvia-o, como hoje o faço, e não sabia ler ainda,

E tu, pai, e tu emprestavas-me os teus livros, e eu, eu dilacerava-me com o cheiro do papel, com as letras, com as imagens, com as tuas palavras “estes livros não são para a tua idade” como se houvesse idade para se manusear e cheirar e “foder” um livro… vigava-me, riscava-os, tal como as paredes do corredor, riscos, riscos, um livro entre gemidos, um livro em pleno orgasmo… Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii…

Desaparecem todas as palavras, o inferno estava próximo, do corredor entranhava-se no meu corpo o cheiro a enxofre e a gajas nuas, pensei (estou em cais do Sodré) não, não estava, nunca lá estive e nego-o, absolutamente,

Menos tabacos nesses cigarros, menos

Aproximava-me, lentamente a minha verticalidade diminuía, sentia-me um miúdo de bibe gritando, berrando, “fodendo” livros com uma caneta de tinta permanente, e nada, até hoje, nada, morreu ele, morri eu, morremos todos.

 

(ficção)

Francisco Luís Fontinha – Alijó

Terça-feira, 20 de Outubro de 2015

Palavras rasgadas


Quem éramos que hoje não somos o que éramos!

Quem somos, hoje, aqui, quando ontem éramos apenas alguns pedacinhos de vidro, sós, tristes, emagrecidos, algures numa cidade, perdidos, esquecidos…

Quem éramos que hoje não somos,

O que éramos, o que fomos,

Nada,

Pó,

Poeira enlatada,

Porcaria,

Caldeirada,

Palavras rasgadas,

Éramos,

Não o somos mais…

O que éramos,

O que fomos,

Talvez um dia seremos…

Restos de jornais,

Amantes,

Não amantes,

Jamais…

Porque nunca seremos o que éramos,

Porque somos aquilo que nunca fomos

E nem quisemos ser,

A dor,

O prazer,

A cama,

O teu corpo,

Era,

E hoje recordamos o que éramos…

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó

Terça-feira, 20 de Outubro de 2015

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

A ténue solidão


(Liberdade para Luaty Beirão e seus companheiros)

 

O amor encastrado nos teus lábios,

Os olhos vomitando lágrimas nos rochedos cansados,

O triste olhar das madrugadas,

Que só as gaivotas conseguem perceber,

As tuas minhas palavras,

Sem vontade de as escrever,

Sentido,

Sonhando,

Não saber

Sabendo

Que o teu corpo mergulha na cânfora manha acorrentada,

Uma lápide,

Sem nome

Sem nada…

Não quero a textura do aço

Quando sou chamado à noite sem razão,

Grito,

Sofro,

E abraço

A ténue solidão…

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó

Segunda-feira, 19 de Outubro de 2015

domingo, 18 de outubro de 2015

O medo da paixão


Fontinha – Outubro/2015
 
 
Ontem tinha medo do escuro,
Meu amor,
Hoje tenho medo da paixão,
Dos pássaros mais tristes que habitam o meu jardim,
Ontem, ontem não,
Meu amor,
Hoje tenho medo das pedras, porque não falam,
Porque, também elas, tal como eu,
Não amam,
Nem choram,
Ontem sentia na minha mão o cansaço da vida,
A não alegria de viver,
Fingia a partida,
Fingia amar sem saber que fingia…
Fingir que não sofria,
Hoje, meu amor,
Hoje tenho medo da paixão…
Sofrida,
Vencida,
Porque ontem tinha medo,
Medo do medo,
Mas hoje, meu amor,
Hoje aprisionei o medo num cubo de vidro,
Vejo-o, toco-lhe nas faces…
Mas ele deixou de pertencer aos vivos…
E é apenas uma palavra sem significado.
 
Francisco Luís Fontinha – Algures fora de Alijó
Sábado, 17 de Outubro de 2015