sexta-feira, 22 de março de 2013

A Rua Dona Grande Solidão

A&M ART and Photos


Chegavas a casa, quando chegavas, e quantas noites desesperaste por mim, quando eu desfilava pelos passeios ornamentais com pedrinhas coloridas, um passeio artístico, com candeeiros de cartolina, junto a ele, as casas de madeira com corações de manteiga, algumas delas, com mais do que um andar, e poucas, com um sótão inclinado, onde, sabias-me perdido entre ondas de chocolate das paredes verdes que alimentavam as teias de aranha das tuas finíssimas mãos, tinhas medo do escuro, e tínhamos começado a construir durante as noites as famosas Rainhas da Rua Dona Grande Solidão, uma rua estreita, Débora, onde a pouca luz desaparecia como desapareciam as poucas moedas de escudo dos fundos bolsos das minhas calças de ganga, filha única, lavava-as à noite e manhã cedo voltava a vesti-las como se elas fossem calças de ganga
Mágicas,
Felizes elas que pensavam em mim,
E não tinham medo de adormecer debaixo da mesa, suspensas no cordel que eu utilizava durante as tardes para segurar o meu papagaio, e saboreando o calor da braseira, elas felizes, elas
Gosto muito delas, Fingia para com os meu amigos quando me confrontavam
Andas sempre com as mesmas calças, não tens outras?
Encolhia os ombros, e esperava que chegasses a casa, quando chegavas, e quantas noites desesperaste por mim, quando dentro da mochila apenas um par de calças de ganga, únicas, verdadeiras peças de arte, e já na altura
Mágicas,
Na altura felizes elas que pensavam em mim, felizes ás árvores de veludo, que de mão dada com os candeeiros de cartolina, e como eu amava a Rua Dona Grande Solidão, as alergias, das drageias, à água-de-colónia que ele trazia da feira da ladra, na altura, as ruas eram de areia pisada por pincéis de arame e guarda-fato com espelhos rabugentos, e quando olhávamos o mar, eles, transmitiam-nos apenas rochedos em decomposição física, e restavam-lhes apenas o espírito melancólico de uma noite sentado no gonzo esquerdo da maré de Maio, e Mágicas
Claro que Mágicas,
Muito elegantes até que eu entrasse vagarosamente nelas, depois, depois abria as asas, abanava-as e em pequenos movimentos ascendentes e descendentes, lembro-me
Lembras-te meu querido,
A levitar até chegar à janela do sótão, e ela, desesperava por mim, e dentro da mochila, farrapos, pedaços de papel, às vezes entrava em casa com o orvalho sobre os ombros, às vezes entrava em casa com os restos de cartolina dos candeeiros, da Rua
Eu amava a Rua Dona Grande Solidão, Lembras-te, meu querido, das paixões dos cubos de vidro onde nos sentávamos depois de...
Não percebi, desculpa?
Mágicas? O quê Mágicas? Não, Não me recordo de nada parecido com magia, espera, espera
Talvez mágico só as tuas coxas de xisto que o Douro engole quando os socalcos vomitam fragrâncias hélices de sons e cheiros,
Só, apenas essas magias que a tua mãe às vezes trazia para casa,
(tou, amor? Tou bem, cheguei bem, onde tou? Na biblioteca, e tu, também tou bem meu amor, e a menina, tá bem, minha querida), e de vez em quando ouvia-te pequenos gemidos a renascerem do teu interior mais secreto, mais escondido, mais impuro, agora deixou de existir a Rua Dona Grande Solidão, agora os poste de iluminação já não são de cartolina como naquela época, os passeios onde havia postes de iluminação as pedrinhas são apenas de uma cor, as casas deixaram de ser em madeira, sem sótãos, e as calçadas já não são de areia calcada pelos pesadíssimos embriagados homens da mochila cinzenta, onde lá dentro
Tinham, diziam, porque nunca vimos, pedras, papeis, restos de livros e
Dizem, porque nunca vimos
Traziam um par de calças de ganga, dizem eles que
O que diziam eles?
Que metiam a mão direita no bolso esquerdo e segundos depois aparecia a mesma mão direita no bolso direito, Pode lá ser!
A sério!
Dizem, dizem que eram calças Mágicas,
(amo-te)
(também eu meu amor)
(tou, amor? Tou bem, cheguei bem, onde tou? Na biblioteca, e tu, também tou bem meu amor, e a menina, tá bem, minha querida, tem saudades tuas, eu também, dá-lhe um beijo por mim), ele acredita em tudo que lhe digo
Até que tinhas umas calças que metias a mão direita no bolso esquerdo e segundos depois aparecia a mesma mão direita no bolso direito, formidáveis essas calças de ganga, meu amor, pois são meu querido, pois são...

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Flores de Inferno

Quem sou eu, senhor ANORMAL?
À segunda foi de vez, e quando todos esperavam que ele fugisse para não regressar mais, ele desce a montanha, devagar como todos os passos mórbidos de homens cansados, da água vieram as cintilações que abraçavam as candeias de alumínio que se suspendiam na chaminé, e nas cozinhas, as doces âncoras do vento que aprisionavam os esquifes ao pavimento húmido da laje submersa em lágrimas de saudade e flores de inferno, na lareira um cisco de oliveira derretia-se como açúcar embrulhado em alguidares palavras, que só ele, o senhor ANORMAL conseguia distinguir nas horas de desespero,
Quando batiam à porta, escondia-se e fingia-se de invisível,
(Diz-lhes que eu não estou),
Sim?
É para conversarmos com o senhor ANORMAL..., ah..., lamento, mas ele disse-me para lhes dizer que ele não estava hoje, ouvia os risos em fotocópias de livros de poesia, e sentia-os descerem em passos apressados a dura calçada de areia até desaparecerem nas luzes do cemitério,
Sim, eu digo-lhes que o senhor me mandou dizer que hoje não estava em casa, saiu, qualquer coisa relacionada com má disposição, Olha
Sim?
Diz-lhes que eu morri anteontem e que fui a enterrar hoje,
Olhe que eu digo-lhes isso, padrinho,
Diz Diz,
Então quando está, perguntaram-me eles?
Ora... foi a enterrar hoje, talvez daqui a cinco dias, sim, cinco dias,
E eu ia, procurava-te, imaginava-te sentada num banco de granito, circular, serrado em duas simples metades, deixavas o corpo florir, começavas por esta altura, quando regressam os pássaros, as abelhas, e o sol, gostas de Sol?
Não percebo, padrinho, nunca percebi porque se esconde de mim,
E do Céu um arco de silêncio pindericamente mal vestido, como eu, padrinho, entre moinhos e lençóis de água, e porque foges de mim, padrinho?
Gosto de si, padrinho,
E poisava-me a mão sobre os meus débeis joelhos, não falava, nada dizia, e talvez escrevesse dentro dele
Eu também, minha querida, eu também..., mas diz-lhes que eu não estou,
E eu, esperava-o, sentava-me sobre a meia-lua do prazer, pegava num livros, lia qualquer coisa, e fechava-o, e recordava o cisco de oliveira cilindrado dentro de uma lareira de prata numa cozinha de aldeia, cansei-me, cansei-me
De ti,
Uma mala de chapa uivava junto aos meus pés, lá dentro, apenas papeis e livros, e claro, senhor anormal, os livros são constituídos por folhas de papel, logo
Os livros também são papeis,
Então trouxeste de tão longe, uma mala
Sim?
Uma mala de chapa e recheada com papeis,
De ti,
Porquê padrinho? Porque tens medo de mim?
E a meia-lua desesperadamente voava sobre os desvairados plátanos do pensamento, havia lápis de cor e folhas de cartolina, sobre os meus joelhos, a mão dele, sentia-a, como mais tarde senti a mão da solidão no interior do meu púbis, como mais tarde senti nas minhas coxas, sim padrinho
A sua suave voz melódica e poética que Deus criou, como as nuvens e os infernos das flores em putrefacção, corpos de carne misturados em bocas de mar que as árvores tanto invejam, Percebe-me, padrinho?
Não, não consigo imagina-te...
Sentada neste sofá à espera que você regresse?
E se eu não regressar?
Tenho-a, todas na minha mão, tenho-a quando lhes menti e lhes disse que o senhor tinha morrido, não morreu e hoje espero-o, sabe?
Não, minha querida,
Apetecia-me recordar a sua mão sobre os meus débeis joelhos, em marés por viver e traineiras de amar, amá-lo como se amam as flores, amá-lo como se amam os homens e as mulheres, e o sol
Gostas de Sol?
Sim padrinho, adoro o sol.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha