domingo, 24 de fevereiro de 2013

Três imagens com sabor a preto e branco

Hotel da Torre. Novembro de 2004.
Abro a janela, é madrugada e não vejo o sol, fumo os meus primeiros três cigarros matinais, um ritual que eu acreditava que só terminaria quando eu morresse, até ao momento não morri, e perdi o ritual dos três cigarros, como perdi tantas outras coisas, ao longe oiço o soluçar do Tejo quando é invadido pelos olhares dos mendigos, descem alguns automóveis a pequena calçada até ao jardim, está escuro ainda, dormes, embrulhada num lençol branco bordado a rimas com sabor a saudade, volto a olhar através da janela, os poucos automóveis, as poucas pessoas, as poucas gaivotas, de um Sábado de Novembro, começam vagarosamente a acordar, de soslaio olhas-me e perguntas-me
Que horas são, meu querido?
Finjo estar também a dormir, encostado à paisagem, e respondo-te que são cerca das sete horas e que o dia está lentamente a acordar, só e triste,
Viras-te de encontro à sombra ténue da projecção da vidraça na parede do quarto, deixas, lentamente, cair a cabeça sobre a almofada de areia que trouxemos do mar, e voltas a adormecer, docemente, como as nuvens que se avizinham, e que repentinamente estão sobre nós,
(preciso de dizer-te que será a última noite nos teus braços),
Covardemente não o faço, não o digo, e vou acendendo os cigarros últimos que restam dentro de uma caixinha de madeira, deixar-te um bilhete sobre a mesa-de-cabeceira? Nunca o faria...
Uma picareta se sonho invade-me e absorve-me, encerro a janela, e de um duche rápido, desço as escadas e apronto-me para mais um dos meus rituais, os meus dois primeiros cafés do dia, um Sábado de Novembro, triste, encharcado com as plumas da noite anterior que aos poucos tinha terminado, e eu sabia-o, e eu sempre o soube
Que era o último Sábado de Novembro,
E fique sentado numa mesa de café a olhar a luz ofuscante do começo de uma manhã entristecida, cansada, e sem vontade de regressar ao Hotel da Torre, mas regressei, e depois despedi-me da tua eterna sombra no meio de um feira de velharias, disse-te adeus, e apeteceu-me comprar um chapéu dos militares da antiga URSS, não sei porque o não fiz.


Belém. Setembro de1971.
Do outro lado da margem, sentado no chão e de pernas cruzadas, um militar vestido com roupa civil fumava cigarros e olhava longínquo o rio acabado de adormecer, começava lentamente a descer a noite sobre uma Lisboa escura, triste, uma Lisboa onde os machimbombos se chamavam autocarros, onde tantas outras coisas se chamavam tantas outras coisas, uma Lisboa à espera de um miúdo com hábitos de brincar debaixo das mangueiras, um miúdo que acreditava que os papagaios de papel eram jangadas de vidro com ventosas para as mulheres (crescidas) colarem no pescoço, um miúdo, um miúdo encavalitado nas grades de um navio prestes a encostar-se ao Terminal de Cruzeiros da Rocha de Conde de Óbidos, um miúdo dentro de uma caixa de madeira com destino aos socalcos do Douro,
Um miúdo com saudades do mar, e das tardes com os cheiros da terra húmida e do capim depois das chuvas.


Belém. Agosto de 1987.
Diziam-nos que a morte era um telefone com linhas cruzadas, marcava o respectivo número e do outro lado da linha, sempre, quase sempre, uma menina com voz de cravo vermelho dizia-me
Peço desculpa, mas deve ser engano,
Engano, questionava-me,
Engano como?
Se tinha sido este o número que ela na noite anterior escreveu num pedaço de guardanapo, que eu, que eu fiz questão de guardar religiosamente na algibeira, juntamente com os cigarros e o isqueiro, e as poucas moedas que sobejaram, como
Como engano?
Ouvia-as passearem-se no distante corredor, e fica na dúvida
(serão ratazanas ou estou a sonhar?)
E percebi que não estava a sonhar quando uma noite, muito avançada, regresso de um voo nocturno e vejo um camarada meu com uma ratazana espetada na ponta do cabo de madeira de uma vassoura a que tinham subtraído um pedaço de madeira, ela balançava, esguichava, estrebuchava, até que
Morreu sem perceber que a morte é um telefone com linhas cruzadas.


Hotel da Torre. Novembro de 2004.
Depois de observar durante alguns longos segundos o chapéu de um antigo militar da EX-URSS e que acabei por não comprar, pensei
Quem, imaginei um louco sempre embriagado com vodka com aquele chapéu na cabeça, pensei nos berros os oficiais também eles embriagados, pensei nos campos de trabalhos forçados na Sibéria, pensei
Não pensava,
Desculpas para me esquecer da tua partida, depois quis comprar um pequeno cachimbo de madeira, peguei nele, manuseei-o como se fosse uma peça de porcelana em risco de ruir, e com todo o cuidado lembrei-me de quantas bocas tinham aprisionado o bocal, achei um nojo e acabei por me virar para uma pilha de livros, velhos, muito velhos, depois
Pedaços de latão em imagens a preto e branco, soldados com braços de prata e línguas mergulhadas em sexos murchos quando a penumbra das sílabas entra pela janela, e
Apetecia-me esquecer-me, apetece-me esquecer
Que aquele Sábado de Novembro de 2004 nunca existiu, como nunca existiu o Setembro de 1971, nem o Agosto de 1987,


Alijó. Fevereiro de 2013
E hoje,
Não sei se algum dia existiu um cidade chamada Lisboa com um rio de nome Tejo e um local lindíssimo com o nome de Belém,
Duvido.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

E depois?

Desenho letras no muro das tuas coxas onduladas debaixo das gotas nuas de água em silêncio, tenho medo, pergunto-me
E depois? Quando o muro se transformar em jardim com flores de seda e coloridas abelhas cantando, e depois?
Poisadas nos mamilos da sede, sem que eu perceba onde fica o bosque, e a canção que é filha do bosque, e os pássaros, e os restantes muros
Desenho letras nas tuas coxas, e tenho o medo, e a vaidade, e tenho o sentido que não sinto, e depois, sento-me sobre o papel amarrotado das tardes violentas que os segredos do Inverno inventam nas tuas pequenas mãos, tenho pena
Dos teus ínfimos dedos, esbeltos, finos, e transparentes,
Como a água dos rios sem nome, sem destino, livremente correndo até ao mar, correndo, correndo, regressando os pinheiros mansos das eternas manhãs sem vidros nas janelas que têm visão nocturna para as rochas tuas coxas, aquelas
Onde desenhas letras? Exactamente, meu amor, essas mesmo, um muro de carne e sedução, curvadas à direita, e à esquerda, embebidas às vezes, ou sempre, no desejo infinito coração com sílabas de pétalas agrestes, como os livros tristes e cansados dos homens sem nome, sem vida, sem viabilidade económica, sós, e abandonadas
Por quem?
Pelos caminhos onde deambulam peugadas, e algumas delas, poucas, que se escondem nas pedras pequeninas dos teus dóceis dedos de fio iluminado pelos lábios da lua, escrevo as letras que desenho nas tuas coxas, preocupo-me, muito, e pergunto-me
E quando terminarem as tuas coxas? E se eu ficar sem o teu corpo, sem a tua sombra, e se eu perder os teus olhos, a tua boca, e se eu
Te perder numa tempestade de areia?
Gostava das tuas mãos quando me desenhavam letras nas minhas coxas, recordas-me as árvores da nossa infância, a minha, a tua, separadas por um muro alto e fino de cimento armado, eu atirava pedras para o teu território, tu, mais amoroso, atiravas-me rosas em papel, uma tarde, furiosa, eu, parti-te a cabeça com uma pedra, fiquei triste naquele momento, depois, durante a noite, sorri, sorri, sorri até que percebi o que era o amor, a paixão e as pedras não serviam apenas para partir cabeças de meninos mimados, filhos únicos, as pedras também serviam para eu perceber o que era a paixão
Por quem?
Pelos caminhos onde deambulam peugadas,
E,
Invejava a pontaria da avó Silvina e do tio Serafim, lançavam pedras e caiam estrelas do céu, ao revés, eu, lançava uma pedra contra uma árvore (alguém durante a noite escreveu EU MAIS TU – AGOSTO DE 1989) onde brincava um pássaro, e partia o vidro da janela da escola, nunca, nunca tive jeito para o lançamento de pedras e para jogar à bola, e meu Deus, Meu Deus... quantos vidros estilhaçados, quantas espigas de milho esmigalhadas, mas estrelas, não estrelas, nunca tive uma estrela, e por quem?
(E quando terminarem as tuas coxas? E se eu ficar sem o teu corpo, sem a tua sombra, e se eu perder os teus olhos, a tua boca, e se eu
Te perder numa tempestade de areia?),
E invejava as letras desenhadas nas coxas que fugiam como os barcos, leves, com o vento, escorregadios como lânguidos gemidos de orvalho, sentíamos as luzes dos livros embrulhados nas tristes maçãs da macieira do quintal, e subíamos pelas escadas da insónia até chegarmos ao varandim com janelas de sangue onde às vezes dormiam os vampiros, os verdadeiros, aqueles que nos chupavam o sangue antes de adormecermos, os mesmos, aqueles que nos roubaram os sonhos, e sempre belas as fotografias a preto e branco, e um dia, desceremos das nuvens, vamos calçar os sapatos com biqueira pontiaguda e com salto alto que deixamos junto ao Tejo, e talvez, e talvez sobre uma mesa estacionada num dos bares de Cais do Sodré, EU MAIS TU – AGOSTO DE 1989, desça de uma árvore de casca grossa, difícil de decifrar, como as equações com integrais que resolvíamos sentados num banco de jardim, debaixo de uma...
E sobravam-nos, não poderei dizer sempre, mas quase sempre,
Letras do muro das tuas coxas onduladas debaixo das gotas nuas de água em silêncio, tinha medo, perguntava-me
E depois? Quando o muro se transformar em jardim com flores de seda e coloridas abelhas cantando, e depois?

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha