Hotel da Torre. Novembro de 2004.
Abro a janela, é madrugada e não vejo o sol, fumo
os meus primeiros três cigarros matinais, um ritual que eu
acreditava que só terminaria quando eu morresse, até ao momento não
morri, e perdi o ritual dos três cigarros, como perdi tantas outras
coisas, ao longe oiço o soluçar do Tejo quando é invadido pelos
olhares dos mendigos, descem alguns automóveis a pequena calçada
até ao jardim, está escuro ainda, dormes, embrulhada num lençol
branco bordado a rimas com sabor a saudade, volto a olhar através da
janela, os poucos automóveis, as poucas pessoas, as poucas gaivotas,
de um Sábado de Novembro, começam vagarosamente a acordar, de
soslaio olhas-me e perguntas-me
Que horas são, meu querido?
Finjo estar também a dormir, encostado à paisagem,
e respondo-te que são cerca das sete horas e que o dia está
lentamente a acordar, só e triste,
Viras-te de encontro à sombra ténue da projecção
da vidraça na parede do quarto, deixas, lentamente, cair a cabeça
sobre a almofada de areia que trouxemos do mar, e voltas a adormecer,
docemente, como as nuvens que se avizinham, e que repentinamente
estão sobre nós,
(preciso de dizer-te que será a última noite nos
teus braços),
Covardemente não o faço, não o digo, e vou
acendendo os cigarros últimos que restam dentro de uma caixinha de
madeira, deixar-te um bilhete sobre a mesa-de-cabeceira? Nunca o
faria...
Uma picareta se sonho invade-me e absorve-me,
encerro a janela, e de um duche rápido, desço as escadas e
apronto-me para mais um dos meus rituais, os meus dois primeiros
cafés do dia, um Sábado de Novembro, triste, encharcado com as
plumas da noite anterior que aos poucos tinha terminado, e eu
sabia-o, e eu sempre o soube
Que era o último Sábado de Novembro,
E fique sentado numa mesa de café a olhar a luz
ofuscante do começo de uma manhã entristecida, cansada, e sem
vontade de regressar ao Hotel da Torre, mas regressei, e depois
despedi-me da tua eterna sombra no meio de um feira de velharias,
disse-te adeus, e apeteceu-me comprar um chapéu dos militares da
antiga URSS, não sei porque o não fiz.
Belém. Setembro de1971.
Do outro lado da margem, sentado no chão e de
pernas cruzadas, um militar vestido com roupa civil fumava cigarros e
olhava longínquo o rio acabado de adormecer, começava lentamente a
descer a noite sobre uma Lisboa escura, triste, uma Lisboa onde os
machimbombos se chamavam autocarros, onde tantas outras coisas se
chamavam tantas outras coisas, uma Lisboa à espera de um miúdo com
hábitos de brincar debaixo das mangueiras, um miúdo que acreditava
que os papagaios de papel eram jangadas de vidro com ventosas para as
mulheres (crescidas) colarem no pescoço, um miúdo, um miúdo
encavalitado nas grades de um navio prestes a encostar-se ao Terminal
de Cruzeiros da Rocha de Conde de Óbidos, um miúdo dentro de uma
caixa de madeira com destino aos socalcos do Douro,
Um miúdo com saudades do mar, e das tardes com os
cheiros da terra húmida e do capim depois das chuvas.
Belém. Agosto de 1987.
Diziam-nos que a morte era um telefone com linhas
cruzadas, marcava o respectivo número e do outro lado da linha,
sempre, quase sempre, uma menina com voz de cravo vermelho dizia-me
Peço desculpa, mas deve ser engano,
Engano, questionava-me,
Engano como?
Se tinha sido este o número que ela na noite
anterior escreveu num pedaço de guardanapo, que eu, que eu fiz
questão de guardar religiosamente na algibeira, juntamente com os
cigarros e o isqueiro, e as poucas moedas que sobejaram, como
Como engano?
Ouvia-as passearem-se no distante corredor, e fica
na dúvida
(serão ratazanas ou estou a sonhar?)
E percebi que não estava a sonhar quando uma noite,
muito avançada, regresso de um voo nocturno e vejo um camarada meu
com uma ratazana espetada na ponta do cabo de madeira de uma vassoura
a que tinham subtraído um pedaço de madeira, ela balançava,
esguichava, estrebuchava, até que
Morreu sem perceber que a morte é um telefone com
linhas cruzadas.
Hotel da Torre. Novembro de 2004.
Depois de observar durante alguns longos segundos o
chapéu de um antigo militar da EX-URSS e que acabei por não
comprar, pensei
Quem, imaginei um louco sempre embriagado com vodka
com aquele chapéu na cabeça, pensei nos berros os oficiais também
eles embriagados, pensei nos campos de trabalhos forçados na
Sibéria, pensei
Não pensava,
Desculpas para me esquecer da tua partida, depois
quis comprar um pequeno cachimbo de madeira, peguei nele, manuseei-o
como se fosse uma peça de porcelana em risco de ruir, e com todo o
cuidado lembrei-me de quantas bocas tinham aprisionado o bocal, achei
um nojo e acabei por me virar para uma pilha de livros, velhos, muito
velhos, depois
Pedaços de latão em imagens a preto e branco,
soldados com braços de prata e línguas mergulhadas em sexos murchos
quando a penumbra das sílabas entra pela janela, e
Apetecia-me esquecer-me, apetece-me esquecer
Que aquele Sábado de Novembro de 2004 nunca
existiu, como nunca existiu o Setembro de 1971, nem o Agosto de 1987,
Alijó. Fevereiro de 2013
E hoje,
Não sei se algum dia existiu um cidade chamada
Lisboa com um rio de nome Tejo e um local lindíssimo com o nome de
Belém,
Duvido.
(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Sem comentários:
Enviar um comentário