sábado, 2 de fevereiro de 2013

Cachimbos de Prata

Um pedacinho de névoa
entranha-se na tua doce boca vestida de alecrim
e das algibeiras insónias madrugadas
acordam as imagens fictícias do orvalho incendiado pelo incenso doirado
olho-te vagarosamente no espelho mental das árvores danificadas
pelos ventos e tormentos que em ti navegam
perdidamente como uma gota de água
esquecida num banco de pedra debaixo de um plátano tresmalhado
e doente apaixonado
pelos orifícios indistintos do velho jardim
um pedacinho de névoa
entre os teus lábios narcisos e a tua língua rosa com pétalas de amor,

Oiço a tua mão voraz desenhando letras nocturnas
em nuvens de seda
oiço os teus gemidos transversais contra as paredes do velhíssimo relógio
suspenso no peito cansado e triste do homem das sete patas de madeira oca
oiço a voz rouca de um cachimbo de prata
saltitando
dançando
nas eiras graníticas das canções que a infância comeu
em pequenos torrões de açúcar
misturados com sílabas de céu estrelado
e sandes de marmelada
ao pequeno-almoço,

Pedia-te sossego e tu desaparecias de mim
dançando
saltitando
como um cachimbo de pedra adormecida pelas vagas contra os rochedos
dormíamos dentro dos ouvidos da praia
e antes de encerrarmos definitivamente os cortinados da Aurora Boreal
entrava em nós o Rossio vestido de gente
com mãos de noite
ouvíamos o rio nas catacumbas do amor
a pintar estrelas de luz
e luas de papel
e eu sabia que tu nunca mais irias regressar das salivas amargas do primeiro amor...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Mentiras de porcelana com dentes de marfim

Parecíamos pássaros vestidos com casacos de aço inoxidável e voávamos e voávamos, e voávamos como se lá fora existisse um fio de silêncio que nos sufocava e víamos às vezes o colar de pérolas da bruxa má, a mulher velha que vivia na cabana de pedra com acesso ao destino, perguntávamos-lhe se um dia alguém nos ia apanhar e cozinhar em chapas de alumínio com molho de rosas em pétalas vermelhas, respondia-nos sempre a resmungar que
Parvalhões de pássaros que nunca aprendem que o destino não existe,
E eu, e eles, elas, acreditávamos que sim, que o destino não existia e era invenção de um velho a que toda a gente chamava de Armindo e diziam as más línguas que era ele o responsável pelo andamento do tempo, pois fazia-se passear durante a noite com uma enorme manivela que servia para dar corda às pesadíssimas roldanas de papel, os segundos transformavam-se em minutos, e os minutos corriam de mão dada com as horas, depois, muito depois as horas vestiam-se de dias, de semanas, meses, e anos, à espera
Parvalhões de pássaros que nunca aprendem que o destino não existe,
Que o amor acordasse numa janela de vidro sem cortinados, apenas a preto e branco a imagem dela, a manhã móvel e soalheira do ainda não acordado Sábado, tínhamos poesia e fatias de pão com manteiga derretida nas palavras de ninguém, que o amor acordasse, se transformasse em homem, se transformasse em mulher, se
À espera que dos parvalhões pássaros nasçam parafusos de areia e beijos de cetim, e beijos de chita, e beijos com beijos em beijos quando desce a noite e entra no púbis das mãos de linho, a minha mãe passava tarde intermináveis a construir colchas de renda, e eu, quando a apanhava distraída, roubava-lhe os novelos de linha para os meus papagaios de papel, e voávamos e voávamos, e voávamos como se lá fora existisse um fio de silêncio, um fio de silêncio com hálito a renda floreada, lindas, belas, elas
As colchas de renda, voavam também elas como se fossem papagaios à procura dos lábios da paixão, vivíamos prisioneiros a uma cratera de tesão que o meteorito tinha deixado nos nossos corpos flácidos, como as toalhas de linho da avó Silvina, e elas
Se
À espera dos parvalhões pássaros,
Pássaros vestidos com casacos de aço inoxidável e voávamos e voávamos, e voávamos como se lá fora existissem madrugadas sem portas, como se lá fora existissem alvoradas sem telhados, como se lá fora existissem dois pequenos corpos nas mãos do velho Armindo, ele hesitava
Ou pego neles ou pego na manivela e dou andamento ao tempo, curiosamente nós também não sabíamos, e ela dizia-me que tudo era culpa de Einstein, e eu
Enquanto fumava cigarros com sabor a chocolate não percebia o que tinha Einstein a ver com o que se tinha passado connosco, mas fingia acreditar, como finjo acreditar em tudo aquilo que me dizem, que me disseste, e dizes
Mentiras de porcelana com dentes de marfim, não importa, um dia voltarás como voltam os pássaros, todos os anos, vestidos com casacos de aço inoxidável, voltarás um dia, a não ser que
O velho Armindo deixe de dar à manivela e o tempo cesse em nós como cessaram todos os desejos de todas as palavras, como cessaram todas as árvores e todos os rios, e lá fora, ao longe, uma fragata de pano voa como voávamos antes de chegarem as amendoeiras em flor, ao longe, muito longe, como cessaram as lâminas de pele húmida com gotinhas de suor, se os
Parvalhões dos pássaros aprendessem que o destino não existe,
Tínhamos os casacos mais pesados da cidade, e ninguém ao regressarmos do dia para vermos, aos poucos, erguer-se a noite entre os mastros de madeira com as velas de pano amarrotado, sujo, levemente cintilante como as lâmpadas das escadas que nos levavam até ao telhado, sentávamos-nos sobre as telhas invisíveis e falávamos com a lua de prata que sombreava as minguas mãos dos vagabundos esquecidos sobre as lareiras de vidro, tínhamos os casacos mais pesados da cidade, e ninguém
“Pesadíssimas roldanas de papel, os segundos transformavam-se em minutos, e os minutos corriam de mão dada com as horas, depois, muito depois as horas vestiam-se de dias, de semanas, meses, e anos, à espera
Parvalhões de pássaros que nunca aprendem que o destino não existe,”
Ninguém queria saber de nós; de mim, de ti, deles, delas, dos pássaros e dos casacos de aço inoxidável.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha