quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Cachimbo de Água em destaque


(Que era pintor e usava sandálias de couro)

Cachimbo de Água em destaque
Sapo Angola


terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Que era pintor e usava sandálias de couro

Sentia-me confusa, tremiam-me as pernas, dos braços, meus, claro, um pedaço de raiva remexia-se convulsivamente, e olhavam-me pelo interior dos cortinados de noite, que forçosamente cerravam as janelas do castelo da senhora dos grandes milagres, onde, desde que me recordo, vivi, cresci às mãos de uma religiosa meio louca, surda, que tinha alguns tiques, um deles, enquanto falava comigo, metia as mãos nos bolsos do meu hábito encarnado com listras azuis, e quando me apercebia, já alguns do objectos que eu transportava jaziam nas mãos dela,

Desculpa-me minha filha, mas faço-o sem perceber,

Usava um lenço de papel pardo ao pescoço, fumava às escondidas, e tenho uma leve sensação que gostava de mim, não o gostar como quem gosta de uma filha, gostava no outro sentido, quando pela noite, descia a Almirante Reis e numa das pensões de hora e meia, entrava, despia-se, e no silêncio da noite convulsivamente, construía barcos de madeira prensada que posteriormente um velho marinheiro utilizava quando ia em sonhos até alto mar e cismava que tinha pescado uma menina loira com olhos verdes,

Tinha um amante o teu pai,

Fui literalmente pescada por um marinheiro em alto mar, numa noite de tempestade e no intervalo de puxarem as redes e de ele atafulhar o cachimbo de prata com ópio, e enquanto acendia, e enquanto não acendia, e apagava-se, e novamente acendia, o adjunto do mestre foi içando as redes, até que

Comandante, comandante, temos um grave problema, e enquanto ouvia o adjunto pensei logo que tivesse sido o Francisco que caísse à água, pois quase sempre andava embriagado, gritei, O que foi adjunto?

Um amante?

Temos na rede uma menina loira com olhos verdes, pensei, Está ele também bêbado, maldito vinho..., e olhei

E não queria acreditar, pensei que fosse do ópio, mas percebi que não, era mesmo uma linda menina, raios, e agora? Que vão dizer os meus amigos? Que fosse do ópio, não, era mesmo uma linda

Tinha um amante o meu pai?

Que era pintor e usava sandálias de couro e vestia calções com mesquinhas letras transversais, e lia Proust, e nunca

Lhe perguntei o significado do amor, sentia-me confusa, tremiam-me as pernas, dos braços, meus, claro, um pedaço de raiva remexia-se convulsivamente, e olhavam-me pelo interior dos cortinados de noite, que forçosamente cerravam as janelas do castelo da senhora dos grandes milagres, a irmã Margarida, pede um desejo

E eu sem hesitar, abraçar o meu pai, tocar-lhe no cabelo indefeso que a própria idade lhe desenhou na cabeça, pegar-lhe na mão, sentir o cheiro

Do cachimbo do teu pai adoptivo?

Que era pintor e usava sandálias de couro e vestia calções com mesquinhas letras transversais, e lia Proust, e nunca

Tinha um amante o meu pai?

E nunca me desejou

Até que o mar me levou.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Às quatro paredes invisíveis da abelha inseminada


A casa louca às quatro paredes invisíveis
que o deserto africano constrói
sobre o cansaço adormecer de uma árvore voadora
e a triste saudade que uma simples folha de papel tece
na boca inocente do morcego
há noites que comem as outras noites incompletas pela imensidão arte do esconderijo
sôfrego
sofrido mendigo do prazer amigo

há ainda noites
separadas
amantes
dramatizadas
viúvas
casadas

doentes
sofridas marés de solidão
que os barcos do desejo rompem
esmagam
nas planícies faces xistosas da pele de uma abelha
à procura desenfreadamente pelo regresso das vozes de granito

não sei
eu
a casa de ramos e esterco empilhados sobre as camas do abismo
janelas sem guardião
portas de entrada sós
uma mulher com asas
não sei
eu

na fogueira mãe abraços
em brasas de sémen do tecto do palheiro
as teias de aranha cinzentas empobrecidas pelo fumo do cachimbo de prata
lata
que a noite comida pela noite anterior
deixou ficar
abandonada
sobre a mesa de quatro patas
o amigo o cão amigo de areia
à espera do mar que incendeia
que semeia os penhascos incensos do amor proibido
a lata inseminada pela cerveja fumegante dos espíritos às insónias molduras

quatro simples fotografias
eu
ele
ela
e a manhã em que me despedi de Luanda...


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó