sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Guilhotina amovível com o ponteiro dos segundos bem afiado

Poucas coisas me importam,
não me importando sequer que um rio de sumo de laranja corra na minha aldeia, não me importando sequer que metade de uma laranja que com o seu sumo serviu para alimentar o rio que corre na minha aldeia, não me importando sequer que eu viva numa aldeia, não me importando que eu habite numa cabana longe da minha aldeia, no cimo da montanha, poucas coisas me importam

- o meu filho deixou de se importar com as sombras dos pinheiros de Carvalhais, o meu filho deixou de se importar com a eira de Carvalhais, onde se sentava sobre as lajes graníticas a ouvir o telintar dos pássaros dentro da sombra dos pinheiros, o meu filho, que deus o tenha, deixou de se importar com os livros e com as coisas, que coisas mãe?, coisas tuas, coisas minhas, coisas dos teus irmãos, coisas que ficaram na eira de Carvalhais, onde estão os meus irmãos?, coisas, coisas dele,

coisas que pouco me importam, importo-me com a noite e com a cidade arrumada e sempre com os lençóis esticados, importando-me importo-me com as laranjas que depois do sumo são o rio onde me sento no final da tarde a contar as traineiras que vêm e vão, subtraio as que não regressaram, e também eu

- não quero regressar, e nunca gostei de relógios de pulso, de relógios de parede, das igrejas com relógios e sinos, e detesto os relógios de sol, e se eu pudesse

sempre noite, sempre geada, sempre uma cidade incendiada pela saudade dos arrepios que o vento transporta do outro lado da ravina, a ponte em madeira está doente, caquética, precisa de drageias para adormecer e de vitaminas para engordar, está grávida, dizem que é uma menina e deve, possivelmente, talvez

- nascer em Janeiro,

talvez de vitaminas, radiografias ao pulmão esquerdo, o senhor está uma lastima, eu doutor? Não o vizinho do terceiro esquerdo, claro que é o senhor,

- nascerá em Janeiro, parabéns,

mas eu bem doutor, deve ser engano, só pode ser engano, até engordei

- estás mais gordo meu querido filho,

vê? Percebe agora porque poucas coisas me importam? Coisas que pouco me importam, importo-me com a noite e com a cidade arrumada e sempre com os lençóis esticados, importando importo-me com os pinheiros adormecidos em Carvalhais e extintos com a passagem das horas

- percebe agora porque detesto todos os relógios doutor? Não sei, talvez, o pior é respirar, dói-me Às vezes, outras importo-me com o sumo de laranja da metade da laranja esquartejada pelas mãos da minha mãe, Queres com açúcar?, e os meus irmãos, não percebo, percebo, fugiram, morreram, desertaram antes de nascerem, abaixo-assinado, nós os filhos da mãe

vê doutor, o que será deste desgraçado sem mim...

- importo-me não me importando que as letras se vistam de números, e depois em relógios, um livro transformar-se-há em guilhotina amovível com o ponteiro dos segundos bem afiado, e afianço-lhe dona Amélia que o seu menino está bem dos pulmões, algumas drageias e nada de relógios de pulso, nada, absolutamente nada, abstinência de relógios, e lá um copito às refeições tudo bem, não é importante,

vê doutor, o que será deste desgraçado sem mim...

- mas eu bem doutor, deve ser engano, só pode ser engano, até engordei

diz-lhe mãe!,

- não me importo mas importo-me com as acácias sem dono que caminham durante a noite na cidade proibida, não me importando mas importo-me que amanhã tenhas lágrimas nos teus olhos, porque quando os meus irmãos desaparecem depois de cair a noite, a dona Amélia

diz-lhe mãe!,

- vê doutor, o que será deste desgraçado sem mim...

cuidado com os relógios, principalmente os de pulso.


(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

Medo do medo

Talvez fosse meia-noite em mim, e os teus olhos diziam-me

- eles já chegaram, e juro que não percebia o que eles me queriam dizer, Quem chegou meus queridos olhos?, os óculos chegaram, os escuros ou os de ver ao perto?, ambos, lá fora desejavam-se círculos de luz com bolas de sabão, e ela continuava Eles já chegaram, e talvez meia-noite,

em mim,
acreditava que das pequenas árvores guardiãs da montanha um par de mãos sobrevivesse à tímida geada das noites passadas ao leme de lareira acesa, francamente juro que não percebia o que eles me queriam dizer, em mim, o livro adormecido em sonhos inconstantes ressonavam nas minhas mãos de Inverno rigoroso, frio, lá fora, cá dentro, em mim, os sonhos dela desenhados nos telhados zincados dos musseques, quando no final da tarde, vagueavam as sombras dos mortos, das plantas mortas, restos de árvore sem perceber

- o que eles me queriam dizer, Quem chegou meus queridos olhos?,

e poucas, às vezes nenhumas, palavras, Não vais almoçar rapaz?, não ter fome patrão, e eu tinha sempre fome, hoje, ontem, amanhã, sempre a mesma fome, sempre o mesmo silêncio nas paredes ressequidas das nádegas embrionárias dos desenhos, sem perceber

- eles chegaram e vão comer-te, e eu, eu todo contente, eu feliz, finalmente vou ser engolido por um bicho enorme, feroz, malvado, talvez seja o mar desabafava contra o candeeiro suspenso no Hall de entrada depois de muito esforço atravessar o corredor da solidão,

às vezes, e poucas, quase nada dentro de mim, um ténue fio de aço que me prendia ao cais de madeira e não me deixava voar, eu queria voar, eles nunca mo permitiram, covardes, montes de merda com olhos de prata, as sombras dos mortos, das plantas mortas, restos de árvore sem perceber que o medo mata as pessoas, e que os homens como eu não morrem de medo, não têm medo, os homens como eu emagrecem com o medo, e desaparecem

- eles chegaram,

e desabafava com as jangadas tristes das tardes miseras onde se ouviam, ali, além, poucas vezes, aqui, as cobras de sete cabeças com pernas de gesso que aos poucos subiam a montanha, em mim, acreditava que das pequenas árvores guardiãs da montanha um par de mãos sobrevivesse à tímida geada das noites passadas ao leme de lareira acesa, francamente

- menino Francisco,

nunca tive medo do medo.

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha
Alijó