segunda-feira, 19 de dezembro de 2011


59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

E o que são pássaros?

Entretenho-me sentado numa pedra a escrevinhar pontos de luz na paisagem adormecida e triste e cansada que desce a montanha e sobe o meu corpo até desaparecer no teto da saudade,
Entretenho-me a chamar os pássaros poisados nas árvores doentes no outono cortinado que suspende os sorrisos da manhã, e eu deixe de saber, quando os pássaros fingem voar e todos eles mortos junto ao rio, e eu entretenho-me sentado numa pedra, a escrevinhar pontos de luz e a desenhar marés no pôr-do-sol, e quando descem montanha abaixo as nuvens emagrecidas pela tempestade, eu, eu fico sem saber o que fazer, e não faço nada, entretenho-me a contar os pássaros,
- Hoje não pássaros para contar, queixa-se o meu corpo no ranger de ondulações e pontos de luz e lâmpadas abandonadas no contentor da despensa, na parede da cozinha o calendário despido com uma mulher despida, e sempre me recordo de ver a mesma mulher e sempre me recordo de ver os dias iguais abraçados a semanas iguais, e as horas,
E as horas engasgadas na penumbra chaminé da garganta do tejo, entretenho-me sentado numa pedra a escrevinhar pontos de luz na paisagem e a contar os pássaros.
- Pergunto, Pássaros? E o que são pássaros?
Pontos de luz que voam e se escondem nas coxas das palmeiras, pensava eu,
E pássaros não pontos de luz, e pássaros não rabiscos que brincam nas costas da maré até desaparecerem nos lábios das gaivotas apaneleiradas e que se passeiam junto ao Jerónimos,
- Pássaros, pensava eu, pontos de luz, e uma sombra desce vagarosamente as pálpebras do automóvel de luxo e em sorrisos e com sôfregos acenos nos candeeiros Filho vai uma voltinha?, Entretenho-me sentado numa pedra a escrevinhar pontos de luz na paisagem adormecida e triste e cansada que desce a montanha, e finjo que não oiço as vozes que acordam dos automóveis de luxo, e tropeço na pedra onde me sento e entretenho-me a contar os pássaros,
Confesso que não sei o que são pássaros,
- Pássaros, pensava eu, Vai uma voltinha filho?, e corria em direção ao tejo e deixava de sentir o chão debaixo dos pés, e imobilizava-me e fazia esforços desgovernados para perceber porque os pássaros me queriam comer, se eu,
Se eu tão pouco sabia o que eram pássaros, perguntava-me, O que são pássaros?,
- Pontos de luz embriagados no desejo de corpos que vagueavam nos jardins de Belém, e eu corria e eu corria até que percebia que o chão se tinha evaporado e eu sossegado dentro do tejo a contar pontos de luz e rabiscos no céu-da-boca de um paquete que regressava de Luanda,
Deixei de me entreter e sentar-me numa pedra a contar pontos de luz e a imaginar pássaros dentro de automóveis de luxo com voz de centeio ao cair da noite, e deixei de fumar cigarros e deixei de viver,
- Vai uma voltinha filho?, Filho da puta respondia-lhe eu enquanto assustava os pássaros poisados nos arbustos dos jardins de Belém, o rio começava a encolher sobre a toalha do jantar, a mesa abria os braços, eu abria os braços, e os pássaros, e os pássaros que ainda hoje não sei o que são,
- Os pássaros em coro de igreja a gatafunhar nas paredes do fim de tarde que me amavam,
E hoje, e hoje sem saber o que são pássaros, e hoje odeio os pássaros que Pássaros?, pensava eu, pontos de luz, e uma sombra desce vagarosamente as pálpebras do automóvel de luxo e em sorrisos e com sôfregos acenos nos candeeiros Filho vai uma voltinha?,
- Filho da puta respondia-lhe eu enquanto assustava os pássaros poisados nos arbustos dos jardins de Belém, Entretenho-me a chamar os pássaros poisados nas árvores doentes no outono cortinado que suspende os sorrisos da manhã, e eu deixe de saber, quando os pássaros fingem voar e todos eles mortos junto ao rio,
E sentado numa pedra entretenho-me a olhar os carros de luxo a evaporarem-se no nevoeiro quando os pássaros fingem voar e todos eles mortos junto ao rio…

(texto de ficção)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

A minha vida

A minha vida
São linhas cruzadas suspensas na tela da solidão
Cores magoadas nas noites de tristeza
Quando abro a janela e nenhum sorriso à minha espera
A minha vida
A sombra complexa dos plátanos do outro lado da rua

A minha vida
Sem vida
Sem janelas
Nem telas
Nem cores…
A minha vida são linhas cruzadas suspensas na tela da solidão

Dois carris junto ao tejo
E um livro na mão

A minha vida
Sem vida
Sem janelas

A minha vida quando se transforma em maré
E engole os barcos da saudade
E mastiga os papagaios de papel das tardes de Luanda…
A minha vida
Maldita vida de linhas cruzadas
Numa tela vazia sem janelas sem portas com cores magoadas

A minha vida acorrentada às sombras do tejo
Numa esplanada amarrotada em copos de cerveja
E miúdas de minissaia que apressadamente galgam o vinte e oito
Desaparecem entre as nuvens da madrugada
Acordam na claraboia do sótão da primavera
E é assim a minha vida

Uma merda complexa disfarçada de plátanos
Do outro lado da rua
E uma esplanada amarrotada em copos de cerveja
Evapora-se no púbis do tejo

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

domingo, 18 de dezembro de 2011


59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

As tuas mãos transparentes

Sinto as tuas mãos transparentes
Quando poisam no meu rosto invisível
Sinto a tua voz
Amarrotada nos gemidos da noite
E se fixam aos meus lábios
Quando uma pétala de rosa
Voa sobre o silêncio engasgado da madrugada
E um rio solitário acorda em mim

E sinto as tuas mãos transparentes
Que chapinham no rio
As tuas mãos transparentes
Quando ancoram no meu peito de rocha cansada

Da tua voz
Os gemidos amarrotados da noite

Quando ancoram no meu peito de rocha cansada
As tuas mãos transparentes
E sinto
A tua voz
E sinto
As tuas mãos transparentes
Na vidraça do pôr-do-sol
Quando em mim se erguem os plátanos que leem poemas junto ao mar

O rio solitário esconde-se nas tuas mãos transparentes
E no meu rosto invisível
Sinto a tua voz
E no meu peito de rocha cansada
A vidraça do pôr-do-sol
Tomba na sombra dos plátanos

Que leem poemas junto ao mar