sábado, 8 de abril de 2023

Mãos da poesia

 Poucos recordam o poeta

Após a sua morte.

Poucos saberão que o poeta morreu

No dia em que ele não foi comprar cigarros

Ou na noite que ele não apareceu

Perante Deus

Para beber o seu último shot de uísque

E fumar o seu último cigarro.

 

Muitos poucos não saberão

Que o poeta está morto

Nasceu morto

E morto irá morrer

Nas mãos da poesia

Poesia morta

Abstracta

De luzes endiabradas nos lábios da madrugada

E se o poeta sofre

Não deve sofrer

Porque um poeta morto

Morto não sofre

E morto irá morrer.

 

Não gosto de mortos.

Dos que partiram

E daqueles que irão partir

E daqueles que nunca chegaram a partir

Antes de fugir.

O poeta morre no dia em que deixar de ir comprar cigarros

E na noite

Perante Deus

Não beber o seu último shot de desejo.

 

O poeta não sofre.

Os mortos não sofrem.

Quem sofre são as palavras

São as flores

São as nuvens e os pássaros

E o mar

E os barcos que dormem no mar;

Todos eles sofrem…

O poeta

O poeta não sabe sofrer.

 

O poeta apenas sabe escrever

O poeta morre enquanto escreve

Enquanto desenha na alvorada

Palavras

Palavras de morrer

Que o poeta morto

Não se cansa de escrever

Não se cansa de sofrer…

Mas o poeta não sofre

Porque o poeta está morto

E os mortos

Todos os mortos

Não sofrem

Não sabem sofrer.

 

O poeta se cansa

Das palavras

Dos dias entre palavras

Dos poemas em banho-maria

Do dia

Toda a poesia

A que morreu

E a que vai morrer

Nas mãos de um homem

De um louco homem

De um poeta louco

Poeta homem

Que sofre e está morto

Dentro de um cubo de vidro

Quando nasce o dia

Quando morre o dia

E o poeta

Louco poeta

Da louca poesia…

Nada.

Ninguém perceberá que o poeta morreu às mãos da poesia.

 

 

Francisco

08/04/2023

Incenso da vida

 Regressam as primeiras equações de sono

E se Deus quiser

Todas as fogueiras

Onde ardem todos os corpos

São

Equações mergulhadas em pequenas equações de sono

 

Revolta-se porque a tristeza aportou em sua mão

Não o faças gazela do mato

Milhafre enfartado…

Nunca peças o perdão

Quando a montanha desce a calçada

E um círculo de luz

Leva-te até às profundezas do Tejo

 

Podias ter-te abraçado a esse rio

Podias dormir nesse rio

Peixe carnívoro de todas as abelhas em flor

Que do salgado sangue

Mergulham na tua boca

Os restos de esperma da noite anterior

 

Às palavras

Abraçam-se os cadáveres de prata que a manhã vomita sobre a geada

Cavaleiro e cavaleira

Madre

Padre

Filho e filhos

(da puta e não só)

Às palavras

Das lápides de sono

Que tal como as equações…

A calçada hoje é um dormitório de espermas ressequidos pelo incenso da vida.

 

 

 

08/04/2023

Francisco 


 Antigamente, tinha sonhos e escrevia cartas a amigos…

Hoje,

Continuo a escrever cartas a amigos!

Rainha da noite

 Se morres

És um herói

Enquanto vives

És húmus

Esterco que trabalha a terra

 

Se estás vivo

Dizem que és um falhado

Incompreendido

Se está vivo

Dizem que és um inadaptado

Um espantalho que brinca num campo de trigo

 

Se morres és valente

Enquanto vives

Vives acreditando

Do que dizem

E escrevem

Sobre ti

Enquanto vives

Se morres és um herói

Principie

Ou rainha da noite

 

 

 

Francisco

08/04/2023

As feras

 As feras entre círculos de luz

Que descem as montanhas

As feras que a madrugada acorda

Sem perceber que da madrugada

Nada de bom virá

A não ser a terra queimada

E os sítios sem memória

 

As feras

As minhas feras

As feras que desenho antes de acordar o dia

As feras que a manhã levita sobre o mar

As feras entre círculos de luz

E barcos com voz rouca

Dos gritos

Das outras feras

 

As feras que a noite traz

Das feras que a noite mata

As feras assassinadas por mim

Quando as montanhas

Se sentam em frente ao rio

Para assistirem ao regresso das feras

Que as outras feras

As feras escondidas na ribeira

Gritam como os barcos

Às feras sem nome

Das feras que se dizem em solidão

 

 

 

Francisco

08/04/2023

sexta-feira, 7 de abril de 2023

Pontes

 Procuro sem saber o que procuro

Procuro sem saber onde procurar…

Aquilo que procuro

 

Não sei se deva procurar

O mar

Uma pequena pedra

Não sei se deva procurar

Aquilo que sinto que me falta

Que todos os dias procuro

Que todas as noites desisto em procurar

 

Não sei se é Deus o que procuro

Se o que procuro é uma palavra

São muitas palavras

Procuro

Sem saber onde procurar

Tão pouco se o deva procurar

Procuro o mar

E o mar teima em não me procurar

Procuro todas as pontes metálicas da cidade

Também não sei se o deva procurar

Porque a cidade não tem pontes metálicas

Não tem rio

Ou o mar

 

Procuro a música e a poesia

Procuro de manhã

Procuro à tarde

Procuro todo o dia

Procuro sem procurar

A noite antes de acordar

E eu poder procurar

Mas o quê?

O que devo eu procurar?

Procuro o mar

E o mar teima em não me procurar

Procuro a lua

E a lua hoje sem luar

Sem mar

Sem janelas viradas para o mar

Onde eu possa procurar

Aquilo que não encontro

Aquilo que não me canso de procurar

 

Procuro flores

Mas não devem ser flores

Aquilo que deva procurar

Procuro as árvores

E todos os pássaros de voar

Procuro

Procuro

Sem saber se deva procurar

Sem saber se deva sonhar

Ou simplesmente desistir

Ou simplesmente deixar…

De sonhar

De tanto procurar

Aquilo que procuro

Aquilo que não me canso de procurar

Sem saber

Sem o querer

Procurar

Procurar aquilo que não deva procurar.

 

 

 

Francisco

07/04/2023