terça-feira, 28 de março de 2023

O fogo

 Ardem nesta fogueira sem nome,

Os sonhos,

Ardem nesta fogueira imunda,

Todas as palavras

E todos os luares,

 

Ardem nesta fogueira que transporto no peito

Todos os silêncios

E todas as madrugadas,

 

Ardem,

Dentro de mim,

Todos os rios

E todos os mares…

E todos os barcos,

 

Ardem

Todas as flores da Primavera,

Todos os horários desmedidos…

Ardem as canções

E os poemas…

E ardem as manhãs ensonadas…

E os poemas sofridos.

 

 

 

Alijó, 28/03/2023

Francisco

segunda-feira, 27 de março de 2023

O cálice de cicuta

 Bebo o cálice de cicuta

Peço ao diabo que coloque mais lenha na fogueira

Escrevo a última carta

Puxo de um cigarro

Desenho nos lábios da paixão

A forca

Depois

Recebo a visita do criador

Quer que eu me transforme em árvore

Digo-lhe que não me apetece

Digo-lhe que vá para o caralho…

 

Sento-me à porta do cemitério

E conto os barcos que passam

Desenho na mão os barcos que passam

E os barcos que choram

E de todos eles…

Sinto a falta do meu pequeno barco a motor

Que colocava numa pequena poça… junto ao mar

E passava as tardes em círculos

Toda a tarde

Em círculos

 

Termino o cigarro

Ainda respiro

Graças a Deus

Levanto-me da cadeira onde me sentava

Em frente ao cemitério…

E começo a escrever no sorriso da noite

Enquanto a noite ainda me sorri

Enquanto a noite…

É noite

 

Depois…

Depois sei que a noite se vai travestir de puta

Que a noite vai correr pelas ruas de Lisboa

Que a noite se vende por um cigarro…

E que o magala de ontem

É o magala de hoje

Que o magala de ontem

Fode o magala de hoje

E que todos os barcos de ontem

São a sucata de hoje

Que os miúdos de ontem

Hoje

Alguns

São assassinos

Bêbados e drogados

Putas e travestis…

 

Bebo o cálice de cicuta

Peço ao diabo que coloque mais lenha na fogueira

Escrevo a última carta

Puxo de um cigarro

E finalmente oiço a voz do silêncio

Pego na espada que transporto junto ao peito

Olho-a

Ela olha-me

E dou-me conta…

Que o triciclo com que eu brincava

Hoje é um monstro

De madeira

Tem olhos azuis

E come todos os magalas que brincaram junto ao Tejo.

 

 

 

Alijó, 27/03/2023

Francisco

Os demónios

 Se Deus quiser

Todas as estrelas tombarão sobre o mar,

Todas as nuvens se vestirão de negro,

Se Deus quiser

Deixará de haver luar,

Se Deus quiser

O silêncio dará lugar ao caos…

E viveremos todos na desordem.

 

Se Deus quiser

Seremos todos pobres,

Esfomeados,

Poetas vagabundos…

Drogados.

 

Se Deus quiser

Acordarão do Inferno todos os demónios

E todos os mortos…

Tão belo, Francisco…

Tão belo todos os mortos retomarem à vida,

Uns bons,

Outros…

Outros filhos da puta,

Como os bons,

Também os filhos da puta têm o direito à vida…

À puta da vida.

 

Se Deus quiser

Morrerão todas as flores,

E todas as flores deixarão de ter perfume…

Cheiram tão mal…

As flores…

São imundas,

Não tomam banho.

 

Se Deus quiser

Morrerão todas as árvores

E todos os pássaros;

Tão parvos os pássaros…

E tão estúpidas,

Tão estúpidas as árvores.

 

Se Deus quiser

Pode desaparecer,

Ir embora,

Esconder-se dentro de um cubo de vidro…

E já agora,

Tal como as flores…

Que tome um banhinho de sais…

E desapareça;

Desapareça.

 

 

Alijó, 27/03/2023

Francisco

Despedida

 Despeço-me de ti, meu amor,

Enquanto o sono não me consome,

Enquanto o sono não me come…

Como comeu o meu pai,

Como comeu a minha mãe.

 

Despeço-me de ti

E das flores do nosso jardim,

Despeço-me das tardes junto ao mar,

Das noites debaixo do luar,

Despeço-me de ti, meu amor,

Enquanto o sono não me consome…

Enquanto o sono não me come.

 

Despeço-me dos livros,

Das telas e dos livros…

Que já devia ter queimado,

Tal como das minhas palavras,

Que me despeço,

Entre abraços e pingos de alegria,

Porque meu amor, a despedida…

A despedida é alegria.

 

Despeço-me de todas as coisas,

Que de belas,

Nada têm…

O que tem de belo uma flor,

Um poema,

Ou uma simples tela?

De belo nada têm…

Apenas têm sofrimento,

Dor…

E noites de insónia.

 

 

 

Alijó, 27/03/2023

Francisco

Carta de despedida de uma doente oncológica em fase terminal

 Algures, 27 de Março de 2023,


Meu querido,

 

Provavelmente, quando leres estas minhas palavras, já não estarei entre os vivos e, todo o meu sofrimento terá terminado.

A Francisca, desculpa, meu querido, desculpa… pois, não sabes quem é a Francisca.

A Francisca, a minha filha, já está no terceiro ano de engenharia computacional (não sei a quem ela sai)… vê lá, como o tempo passa, como o tempo voa. Como o tempo voa… meu grande amor.

Sei que brevemente irei partir, sem que te tenha contado toda a verdade, também não sei a razão de te ter ocultado (sim, meu querido, tu, tu és o pai biológico da Francisca), e só agora, que vejo o final do túnel e a luz… é que ganhei coragem de lhe contar; ficou furiosa comigo e julgo que me vai odiar eternamente; tal como tu, talvez… me irás odiar eternamente, mesmo sabendo que tu, meu grande amor, és incapaz de odiar o que quer que seja. Preferes sofrer de que odiar.

E sabes, meu querido, o meu maior receio é que ela nunca venha a procurar-te, gostar ou amar-te; tão teimosa que ela é, mas tal como tu, que és incapaz de dizer a alguém que a amas ou gostas, também ela, também ela é assim…

Peço-te perdão, por tudo.

Recordo os livros que líamos em conjunto, recordo as palavras que me escrevias, e sim, meu querido, as tuas palavras faziam-me sentir tão especial, tão segura… tão… tão amada como nunca o fui. A minha vida foi um erro, um erro que paguei muito caro e que talvez esta maldita doença seja o castigo de Deus por todo o mal que te fiz.

A nossa filha está impossível. Quase não quer falar comigo, não sei se é devido ao meu estado ou ao ter que encarar a verdade; que tu és o pai dela.

Lamento, mas a Francisca nem o teu nome quer ouvir…

Mas peço-te, meu querido, peço-te que tentes conversar com ela, e aviso-te já que não será fácil, pois além de teimosa, ela é também muito orgulhosa; a quem é que ela sairá!

Se eu tivesse forças, juro-te pelo todo o amor que sempre tive para contigo… juro-te que me suicidava, mas já nem forças tenho, neste momento sou um vegetal à espera de voar… voar em direcção ao mar, ao mar que tu tanto amas.

Perdoa-me meu querido, perdoa-me por tudo.

 

Desta que nunca te esqueceu,

 

 

Até um dia, meu querido.

 

(ficção)

domingo, 26 de março de 2023

Retracto

 Sinto tanto a tua falta,

E odeio olhar o teu retracto,

 

A vida é construída de sombras,

Momentos invisíveis que se vão perdendo no tempo,

Às vezes, temos tudo aquilo que queremos da vida…

Outras vezes,

A vida nos dá tudo aquilo que não queremos,

 

E já não suporto olhar-te sobre esse móvel,

Como se estives a observar-me,

Como se estives a olhar-me…

Como sempre me olhaste,

 

Não suporto,

Olhar-te com esse olhar de dor,

Em lágrimas…

Às vezes, apetece-me esconder o teu retracto,

Dentro de uma caixa…

Outras vezes,

Sento-me numa cadeira,

Oiço Pink Floyd…

E talvez acredite, que um dia, qualquer dia…

Me digas; estou aqui, meu querido!

Estou aqui…

 

 

 

Alijó, 26/03/2023

Francisco

Ausência

 Habito neste corpo sem espaço,

Deste corpo ensanguentado

Quando a Primavera promete um abraço…

Neste corpo ausentado.

 

Habito dentro deste mar

Que transporto na minha mão,

Habito em todas as noites de luar,

Das noites onde procuro o pão.

 

Habito neste corpo sem nome,

Deste corpo sem identidade…

Habito dentro deste corpo em fome…

 

Da fome das palavras que deixarei de escrever.

Habito nesta ausência que traz a saudade…

Na saudade de morrer.

 

 

 

Alijó, 26/03/2023

Francisco