foto: A&M ART and Photos
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Há uma parede ínfima que separa a saudade da
vontade de regressar, há uma brecha na parede ínfima onde me é
permitida a entrada, e mesmo sendo apenas ao Sábado, eu entro, e
fico lá, a olhar os pedaços de loiça que sobejaram da catástrofe
que as madrugadas sem destino provocaram na melodia que junto à
noite ouvíamos, provavelmente, da casa do vizinho, mas ao longe, um
senhor de barba, todos os finais da tarde, saboreava o seu trompete,
e eu, uma criança curiosa, inventava palavras para justificar
aqueles sons, que ainda hoje oiço, cerro os olhos, e a música flui
em mim como o vento quando enrola os lençóis pendurados no estendal
perdido no quintal, lá, misturam-se couves, cebolas, tomates,
feijão-verde, alhos e algumas galinhas em processo de rescisão de
contracto, são velhas, e imaginando-as dentro de uma panela em
ferro-fundido, nunca, nunca estarão prontas para serem comestíveis,
a não ser que
(o infinito dos dias deram lugar à rapidez das
palavras, quero-as escrever e estou a sentir dificuldade de
imaginar-me sentado a uma secretária (digo – de madeira) com uma
caneta de tinta permanente a escrever num caderno sem nome, talvez
lhe coloque o nome de “Matraquilho”, Porque não? Sempre será
mais agradável escrever sobre um nome, semelhante a escrever num
corpo desnudo, e não saber o nome da folha de pele doirada onde se
escreve, “onde se lê folha de pele doirada, o escritor quer dizer
PÉTALA DE ROSA ABANDONADA”, e claro, é como beijar os lábios
mais belos do Céu e desconhecer o nome desses lábios, todos têm um
nome, uns são de filigrana, outras são de marijuana, outros..., o
nome, por favor, insira a moeda na ranhura, e rode a alavanca, e logo
em seguida tem o seu desejo concretizado, e melhor do que fazer
pipocas, porque essa ideia já é tão velha como o apelidado de
“cagar”, porque quase há trinta anos que vejo os ciganos nas
feiras a venderem pipocas, e como dizia um professor meu na
Universidade, tudo em engelharia já foi inventado, ou quase
inventado, neste momento a sabedoria está em descobrir novos e mias
económicos materiais, portanto, neste momento é na ciência de
materiais que está a sabedoria, porque de equações quase que
estamos conversados, esta agora... Pipocas..., ele há cada um)
A não ser que a minha amiga que vive na cabana a
seguir à ribeira tenha uma porção mágica para transformar
galinhas velhíssimas em novas, com coxas, com lábios, com seios,
comestíveis
(o rio enfureceu-se comigo, entrou-me em casa e
destruiu-me todos os papeis e livros, e eu não percebendo se estava
a sonhar, e eu não percebendo se estava a dormir, apenas recordo-me
de dizer – Felizmente, felizmente que alguém fez alguma coisa e
destruiu-me esta porcaria sem cheiro, semelhante a rodas de
chocolate, parecidas com bolachas de madeira – E logo eu, eu meu
querido, logo eu que sou apaixonadíssimo por rios e barcos, logo eu)
Comestíveis saudáveis, comestíveis como folhas de
alface – quando a parede ínfima que separa a saudade da vontade
de regressar, há uma brecha na parede ínfima onde me é permitida a
entrada, e mesmo sendo apenas ao Sábado, eu entro, e fico lá, a
olhar os pedaços de loiça que sobejaram da catástrofe que as
madrugadas sem destino provocaram na melodia que junto à noite
ouvíamos, provavelmente, da casa do vizinho, mas ao longe, um senhor
de barba, todos os finais da tarde, saboreava o seu trompete, e eu,
uma criança curiosa, inventava palavras para justificar aqueles
sons, que ainda hoje oiço, cerro os olhos, e a música flui em mim
como o vento quando enrola os lençóis pendurados no estendal
perdido no quintal, lá, misturam-se couves, cebolas, tomates,
feijão-verde, alhos e algumas galinhas em processo de rescisão de
contracto, são velhas, e imaginando-as dentro de uma panela em
ferro-fundido, nunca, nunca estarão prontas para serem comestíveis,
a não ser que – e dizem-me que amanhã é outro dia, claro,
compreendo perfeitamente minha querida senhora, mas... E no Sábado?
(não sei o que são Primaveras)
Grades de sombra
(havia silêncios misturados nos sons do trompete do
homem de barba, recordo-me agora, que era branca, tipo – Pai Natal?
- Ora aí está, tal e qual, isso mesmo, e na altura eu sentava-me em
frente à porta de entrada, uma casa simples, descomplexada, onde os
aposentos de serem tão minúsculos quase que abria os braços e
atravessava o quarto, entrava na casa da vizinha, e tirando isso –
éramos felizes – e aqueles sons habitam hoje dentro do meu corpo,
ainda hoje, sento-me em frente à porta de entrada da cabana onde
habito, e apesar de não ser a mesma casa e de não ser o mesmo
local, consigo ouvir os sons melódicos do trompete do senhor com
barba branca, talvez do tempo, talvez da idade, talvez dos versos...)
E o teu corpo prisioneiro em grades de sombra, num
castelo de areia, tão alto, tão alto, que é quase impossível
alguém subir, subir – se ao menos soubesses voar! - Pois, mas
infelizmente não sei voar, pois, mas infelizmente tenho medo que a
areia ceda, e se transforme em grãos como bolas e sabão quando
éramos crianças e andávamos pelas ruas do bairro a lançar
bolinhas para a atmosfera, hoje, ainda as vejo, às vezes, a
atravessarem o horizonte entre voos rasantes e lentidão de saliva, e
o teu corpo lá, lá, lá...
(A não ser que a minha amiga que vive na cabana a
seguir à ribeira tenha uma porção mágica para transformar
galinhas velhíssimas em novas, com coxas, com lábios, com seios,
comestíveis – Depois de amanhã é Sábado – e mesmo assim
talvez não seja este Sábado que vou conseguir entrar através da
brecha da parede ínfima que separa a saudade da vontade de regressar
– só se as comermos assim, mesmo assim, duras)
Lá, na rua onde vivemos, aprisionado a grandes de
sombra, e lá – Lá o quê? - lá bem no alto a entrada no castelo
para chegar à cela invisível onde ela come e dorme e vive... e
dizem que ama.
(quase ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha