domingo, 6 de maio de 2018

Âncoras de desassossego


Tinhas nas mãos os ossos enraivecidos da solidão,

Dos teus olhos desciam as palavras que eu escrevo no teu corpo; quando me escondo de ti na madrugada.

Tinhas nas mãos as sangrentas areias do deserto,

Poisavam livros nas tuas coxas, e do Luar regressava a nuvem da lamentação,

Uma lágrima chorada no teu rosto,

A alma desinquieta que atormenta os ventos nocturnos,

Como pequeníssimos papéis perdidos nos teus dedos.

Assim… ao deitar.

 

Sonhava com rugas, pedras e enxadas,

Rasgava a terra bolarenta dos segredos muros de xisto,

E, todas as manhãs, tinhas nas mãos a aurora neblina suspensa na janela do sonho.

 

Tinhas nas mãos a alavanca mecânica, o martelo e a minha dor…

 

Entre as penas dos melros brincando no meu jardim,

A sucata dos dias transformados em madrugada,

E os barcos, lá longe, vomitando âncoras de desassossego.

 

Perdi-me em ti, sabes?

 

Tinhas nas mãos a ânfora caminhada dos trilhos desenhados numa rocha,

Os santos em rebeldia nos altares das capelas,

O silêncio,

As pedras, os sargaços, e outras velharias…

 

Tinhas nas mãos o meu rosto…

 

E nunca percebi a claridade dos teus lábios.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 6 de Maio de 2018

sábado, 5 de maio de 2018

Sinfonia


Sentia-me obtuso com a tua simplicidade dos jardins adormecidos; uma flor poisa ruidosamente no teu rosto. O acordar!

Sentia-me confuso com o silêncio dos teus lábios, flácidos, cansados das minhas pobres mãos,

O sono.

Sentia-me perdido na seara da solidão,

Quando os pássaros escreviam palavras na eira, era Verão, e a candeia perdia-se sobre a mesa do esquecimento,

Me levanto,

E pego no Sol.

Me levanto,

E pego no silêncio que traz o Sol,

Sentia-me uma pomba quando o teu corpo desleixado aterrava no meu olhar,

Uma réstia de alegria,

Uma sinfonia para brincar…

E ouvia desenfreadamente os sons da alvorada.

Como eu queria ser criança…

 

 

 

Alijó, 5 de Maio de 2018

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 1 de maio de 2018

Sem ti


O fogo, sem ti, não é fogo.

É cansaço que se apodera dos braços,

É flor que morre na tua mão,

É avenida deserta, nesta cidade, sem pão.

O fogo, dos beijos baços,

É jardim de árvores caquécticas,

Adormecidas,

Tortas.

O fogo, sem ti, não é fogo.

É noite mal dormida,

Sorriso na parada do sofrimento,

De olhar distante,

É sirene da alvorada,

Muro em xisto,

Que atormenta minha amada…

Ai, meu amor, o fogo, sem ti…

Atormenta tanta gente.

O fogo, sem ti, meu amor,

É a luz das esplanadas de Verão,

São ruas,

Casas…

São barcos encostados ao portão,

Quando o meu quintal dança nos teus lábios de algodão,

O fogo, sem ti, meu amor,

Não é nada, nem pão, nem pedras poisadas no coração.

Amanhã, se o fogo, sem ti, não for fogo,

A minha vida é um pequeno conto,

Palavras…

Palavras, meu amor, sem ti!

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 1 de Maio de 2018