segunda-feira, 4 de abril de 2016

túnel de xisto


perdi-me nesse túnel de xisto

acorrentado ao rio encurvado nos teus seios

socalco após socalco

desço até ao poço da tristeza

escrevo nos rochedos

os caracteres mutilados do sonho

oiço os gemidos de um corpo esquecido no regresso do pôr-do-sol

imagino-me dentro desse corpo de dor

como se fosse a minha última palavra

entre ossos sem remetente

ou destinatário

deixei de receber cartas

pequei nas que tinha escrito na infância e transformei-as em cigarros coloridos

papéis que ardem no comportamento da memória

estou cansado de me perder

e de ser achado pela madrugada

junto a um qualquer apeadeiro deserto

aqui morreram os comboios

aqui morreram os meus pequenos sonhos

derramados pelas âncoras do desejo

na alvorada

não tenho tempo para recordações

não tenho tempo para corações de geada

quando hoje o túnel de xisto

habita esta cidade de cadáveres sem ninguém

ausentes

empobrecidos pelo tempo

não dou conta do adormecer das horas

não tenho horários

sentimentos

nem pulso para suportar um simples relógio de corda

morreram os relógios

e morreram os pulsos que se acorrentam aos relógios

sem remetente

ou destinatário

 

 

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 4 de Abril de 2016

domingo, 3 de abril de 2016

entre parêntesis


o peso do corpo

quando o corpo se ausenta da realidade

a morte vulcânica do sentido proibido da vida

os tristes pássaros empoleirados nas avenidas sem destino

a lucidez do alpendre da solidão

caminhando calçada abaixo

os ossos

o pó dos ossos

manchado nos camuflados risos da manhã

ao teu lado

oiço amo-te

ao teu lado

oiço-te desejo-te

mas a madrugada roubou-nos o desejo

tenho uma estrada abandonada

nos abismos da madrugada

o silêncio enraizado na melancolia do suor teu corpo

a alegria

sentindo a solidão dos obscenos corpos de nata

há-de viver em mim a mulher desenhada nos espiões da noite

o amanhecer morre no ínfimo acreditar da noite

tenho sono

meu amor

amanhã viverei no teu corpo

amanhã sentirei o teu corpo

fatias finas

papel amargurado

nas algibeiras dos corpos suicidados

a morte

os amigos da morte

na ambição do sonífero sonolento

hesito

morro

neste barco de sentinelas amordaçados

o tempo

sempre ausente de ti

enigmático coração de vidro

sofro

deixo-me sofrer pelos teus lábios

os beijos

o comboio em direcção ao nada

transeuntes acabrunhados

que só o vento desenlaça na porta de uma casa de alterne

o medo da morte

a embriaguez dos rostos maltratados

que os livros comem ao pequeno-almoço

são horas de partir

meu amor

a ausência do cachimbo oco que habita a minha mão

a ausência do olhar

correndo em redor do mar

a cerveja quente o uísque alicerçado às minhas costas

fumam

comem cigarros livros de papel fumado

a noite é um corrupio sonolento da alma

amei-te

quebrado nas montanhas da solidão

este magro corpo acordado do sono

este magro sono acordado no magro corpo

gosto de ti

dos teus olhos vestidos de noite

entre parêntesis

snob

sono da alegria de morrer

 

Francisco Luís Fontinha

domingo, 3 de Abril de 2016