quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

O vendedor de sonhos

A vida tem destas coisas e tanto estamos na “merda” como repentinamente pertencemos ao estrelato do céu noturno de inverno, e pensava eu que terminaria os meus dias como mendigo dos tempos modernos e que engando eu estava,
- É preciso acreditar e ter esperança,
E eu perguntava-me Acreditar em quê ou em quem?, E eu perguntava-me Ter esperança em quem ou em quê? Que a noite se vestisse de dia e o dia se travestisse de noite? Que deus descesse à terra e se ajoelhasse a meus pés e me pedisse perdão? Ou que em vez de termos um túnel encravado na serra do marão tivéssemos o mar em Trás-os-Montes com gaivotas com traineiras e petroleiros e ao final do dia o pôr-do-sol?
- Nem acredito e muito menos tenho esperança murmurava eu todas as noites antes de adormecer,
E hoje precisamente enquanto tomava café pago por um dos meus amigos porreiros li na penúltima página do jornal
- Amor, Possibilidade de encontrar um grande amor. Trabalho, faça aquilo que melhor sabe fazer.,
E por grande amor entendo talvez alguém com cento e oitenta centímetros ou duzentos centímetros de altura e com cerca de cem quilogramas de peso, e nada, nada Acredite em mim Rigorosamente nada, e as únicas coisas grandes que vi hoje resumem-se a três cisternas carregadas de vinho, Vinho?, Sim vinho
- É preciso acreditar e ter esperança,
E do bom,
E dei-me conta hoje que a melhor coisa que sei fazer é sonhar e de mendigo dos tempos modernos vou começar a vender sonhos pelas ruas da cidade, e tenho-os desde cinco euros até vinte e cinco euros e de várias cores e sabores,
- É preciso acreditar e ter esperança,
E hoje também decidi mudar de marca de cigarros, do SG Filtro vou começar a fumar Tinto, é mais barato e não prejudica os pulmões e ainda ganho uma moca inteiramente grátis,
Sim vinho
Porque nos tempos que correm só com uma grande moca é que se consegue sobreviver (acreditar e ter esperança) e se for do bom,
E do bom,
E assim, senhoras e senhores, e assim se me virem pelas ruas da cidade com uma mala suspensa no braço e recheada de sonhos, não tenham medo, aproximem-se e comprem-me um,
Obrigadinho e que se faz tarde e antes que chegue a ASAE vou dar de frosques e fumar um Tinto,
Do bom.

59,4 x 84.1 – Francisco Luís Fontinha

59,4 x 84.1 – Francisco Luís Fontinha

59,4 x 84.1 – Francisco Luís Fontinha

Cansaço da vida

Canso-me da vida
Canso-me dos alicerces de prédios em ruina
E de vidas descruzadas em manhãs submersas
Em olhares de maré

Em gritos de revolta
Canso-me das ruas e dos relógios de pulso
Sempre a recordarem-me que envelheço
E me transformo a cada segundo
Numa sombra mortuária da noite escura
Da noite de ausências

Canso-me do sonambulismo dos meus olhos
Presos a uma vedação de arame invisível
Com vista para o mar
Sem gaivotas
E barcos enferrujados
Made in China

Canso-me das árvores
Que escondem poemas defecados
Numa sombra imaginária

Canso-me do rio
E quando o olho
Rio nenhum
Milhões de cadáveres metálicos
Abraçados a beijos de tungsténio
E sexos de aço inoxidável

À procura de um porto de abrigo

Canso-me das minhas mãos embrulhadas em tinta
E que procuram na tela seios encarnados
E púbis descarnados junto ao pôr-do-sol
Antes de cair a noite

Quando deixo de me cansar

Canso-me da vida
(e se a vida se cansa de mim, paciência, problema dela)
Canso-me das palavras que escrevo
E que não fazem sentido

Quando deixo de me cansar
Antes de cair a noite
E entra a noite nos meus miseráveis aposentos
E eu cansado
E eu farto
E eu

Nunca me canso de olhar
O menino de pulseira no bracinho
E crucifixo ao peito

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

Noite sobre a cidade


84,1 x 59,4 – Francisco Luís Fontinha

Desce a noite sobre a cidade
E os homens e os pássaros e as árvores e as ruas
E o rio
E o desejo e a saudade…

Extinguem-se nas asas de um sorriso

Tudo morre
E das cinzas renasce um fio azul embrulhado num abraço
E um papagaio de papel de muitas cores
Voa nas lágrimas de um menino

Extinguem-se nas asas de um sorriso
As coisas boas da vida

18 de janeiro


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha