terça-feira, 1 de outubro de 2024

O regresso sem embarque

 

O peso da dor

no corpo do enforcado

dos silêncios de luz o amanhecer

(uma criança chora docemente)

nos uivos das manhãs sem cortinados

beijos do pequeno-almoço

na distância ao vento

e o enforcado abraçado

ao barco da saudade

 

o regresso sem embarque

 

a miúda com flores na cabeça

pinta as lágrimas do enforcado feliz

no jardim da miséria

 

o peso da dor

em liberdade condicional

 

dentro do corpo

o enforcado no silêncio das tardes de Verão

a praia alimenta-se de bebidas exóticas

e bolachas com chocolate

e cigarros imaginários

nas angustias do medo

do medo de não terminar a viagem

não regressar

 

regressar

à praia onde poisam os barcos de papel

e brincam os papagaios de abelha

no pólen da Baía de Luanda

as palmeiras seguram o enforcado

com os olhos das gaivotas

e as mãos dos imprevisíveis horrores

antes de partir o comboio da tristeza

hoje

hoje sem regresso

hoje

e regressar para quê?

A cidade de Deus

 

Esta é a minha cidade inventada por Deus

que me esconde quando acordam as tempestades

e o mar sobe até ao quinto andar

e há uma porta em forma de cacimbo

com o cheiro a capim doce e a terra húmida,

 

Há em mim esta cidade

preenchida nas telas brancas

com espaços vazios

sombrias depois dos alicerces teus cabelos

mergulharem na penumbra do feitiço da noite,

 

Procuro a saída e percebo que nesta cidade

na rua onde habito desta cidade

não tem portas de emergência

não tem escadas de incêndio...

nem as palavras poéticas das melodias dos cigarros em festa,

 

Esta cidade é uma “merda” de cidade inventada

tem muitas portas

tem muitas janelas

mas nenhuma delas

me dão acesso ao amor dos jardins junto ao rio,

 

Nesta cidade perdida ando como um vampiro

ou um ramo de árvore depois do pequeno-almoço

quando a sorte desaparece e as pequenas lâmpadas do estômago fingem-se apagadas

esta cidade com esqueleto de vidro e aço e granito

e pingos de silêncio dos suicídios das gaivotas cinzentas...

… um sonhador travestido de mendigo

 

Objectos complexos

quiçá dos números perfeitos que o corpo absorve

objectos como serpentes venenosas enroladas na garganta da morte...

e o teu novíssimo esqueleto de chita vagueia sobre os zincos telhados

que a noite esconde quando das estrelas vêem-se os alicerces da solidão,

 

Ove-se em ti o círculo de sombra que a madrugada esconde

vivíamos embebidos no pânico das amendoeiras em flor

percebíamos que um dia também seriamos flores com braços de xisto

e no peito um pequeno sorriso de rio elevar-se-á até ao cimo da insónia...

ouve-se que o teu corpo amarrota papel pedaços como palmas de sofrimento nas ardósias das tardes de suicídio...

 

Objectos cansados pelos sons poéticos dos teus lábios

dizes-me que sempre fui um louco

… um sonhador travestido de mendigo voando nas transversais ruelas da cidade

eu... sou a cidade

prostituindo-se com a poesia invisível dos trapos pincéis que o mar alimenta.

O mar dos teus lábios

 

Quando ouço a palavra amo-te

no mar dos teus lábios

tenho medo meu amor

que tudo seja mentira

que eu esteja a sonhar

e que as palavras sejam sombras

nas paredes do desejo

ao cair da noite.

… e ardes dos livros envenenados...

 

... e ardes como pedaços de papel sobrevoando a poeira madrugada dos livros envenenados...

o putrefacto poema vagueia como infinitos gemidos suspensos na árvore do desejo

dormem como cadeiras vazias as lâmpadas húmidas do corpo teu mergulhado em sons melódicos

ardes como os beijos

que nascem nos lábios do amanhecer,

 

Amor mergulhado em silêncio poeira que a insónia deixa nas flores com esqueleto de pedra...

uma mão traiçoeira sobe cuidadosamente os degraus da manhã de porcelana

… e ardes

como invisíveis sílabas na lareira da fome

ou de uma janela o cansaço viver como cordas de nylon em pingos de sémen,

 

Oiço-te na sonolenta despedida do calendário de parede

e ardes...

como pequenas palavras em suor teus seios de ébano

percebo o teu olhar entre as cinzas da lareira nocturna...

nas flores com esqueleto de pedra encarnada,

 

… e ardes

dos livros envenenados...

(e o negro que alimenta a noite de ti)

 

Tinhas-me prometido o sono

o sossego

e o negro

que alimenta a noite de ti,

 

tinhas-me prometido o silêncio

e as pequenas árvores do bosque

perto

antes do amanhecer acordar e levar-te,

 

Tinhas-me a mim

e trocaste-me por um velho espelho recheado de ranhuras...

tinhas-me prometido o desejo

e apenas cacos e pedaços de beijos sobejaram sobre a mesa da sala,

 

tinhas-me e nada de ti era a verdade

nunca tivemos manhã

nunca existiu em nós alegres madrugadas...

tinhas-me e deixaste-me fugir pela fechadura do medo,

 

tinhas-me prometido o prometido

as palavras que escrevo

que tenho medo de escrever e

as palavras vorazes como um rio em ti perdido,

 

tinhas

tinhas-me prometido o sono

o sossego

o desejo,

 

(e o negro

que alimenta a noite de ti)

 

tinhas-me prometido o fogo

e todas as lareiras de todas as bibliotecas das casas abandonadas

tinhas-me

e deixaste-me suspenso no tecto da insónia...

As janelas invisíveis da solidão

 

No teu corpo de giz

incendeia-se a ardósia da noite

do teu corpo

o giz das palavras ocas

sem o destino prometido

 

uma luz de silêncio

entra em ti

e atravessa as paredes das tuas mãos

 

o silêncio de deus

 

o buraco da noite nos teus lábios

quando a ardósia se dissipa na tua boca

e dos teus cabelos

o vapor de giz em delírio nas quatro paredes

do vento

tudo em ti

são pequeníssimas partículas de pólen

nas janelas invisíveis da solidão...