quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Os relógios da inocência


Vivo numa casa assombrada
com uma cama cansada
vivo numa casa transformada pelos verbos difíceis de conjugar
onde as flores de amar
dormem docemente no centro da madrugada

vivo numa casa com uma eira despenteada
uma casa sem janelas
uma casa sem portas
sem telhado
uma casa desgovernada
cansada
assombrada
nos telegramas sem resposta que a noite envia para o meu leito
o rio não passeia na minha rua
e as mulheres que vendem palavras em quilogramas disfarçados de migalhas
chamam as gaivotas poisadas no oceano
que saboreiam a fome da manhã

a cidade extingue-se no pensamento das cigarras
e as formigas
coitadas
à espera das metralhadoras apontadas
ao pôr-do-sol
(enquanto existe pôr-do-sol e é grátis)
com a ordem inventada de fuzilamento de todos os livros
e de todos os desenhos
nas ruas enfeitadas com lágrimas de borboleta

hoje descobri a beleza da saudade
e brinquei nas esplanadas de Belém
não vi o mar
porque cerrei os olhos
não me apetecia olhar os barcos

porque na minha casa assombrada
vive a madrugada
brincam as flores da extinta Primavera
bebericando o pólen de amêndoa das sílabas abandonadas
pelos relógios da inocência.

(poema não revisto)

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Quando o mar deixa de sonhar


Posso ser o sabonete que voa sobre a tua pele cansada
meu querido amor suspenso na madrugada
do silêncio o teu corpo emagrece lentamente
como as pálpebras das árvores no Outono
posso ser a caneta desgovernada
com que escreves as palavras que vivem nos meus olhos
os verdes
os teus
os braços encardidos da rua que dorme na cidade
ou as janelas com vidros de cetim
e estrelas brilhantes
o céu onde poisa o teu peito cintilante

posso ser as arcadas escurecidas do templo em ruínas
as músicas que recusas ouvir
ou simplesmente os livros
posso ser os livros que nunca irás escrever
(por falta de tempo
porque não tens vontade)
quando pensas em mim
vagueando pelo corredor da casa sem velas para navegar

sem rumo
ou cais para aportar

posso ser meu querido amor
o banco onde te sentas no final do dia
as palavras
semeadas nas nuvens do desejo

sem rumo
ou cais para aportar

a mulher simples enrolada na clandestinidade da maré
quando o mar entra na algibeira

posso ser meu querido amor
os poemas que me escreves
sem nexo
sem sentido
simplesmente porcarias
com asas de pétala
e sorrisos de sílaba abandonada
em pequeníssimos movimentos de vento

se quiseres... posso ser o beijo disfarçado de sol
sem rumo
ou cais para aportar
a mulher simples enrolada na clandestinidade da maré
quando o mar entra na algibeira
quando o mar deixa de sonhar.

(A. Alexandra – Lisboa)

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Palavras ilegíveis


Húmus meu cansaço
alegremente apaixonado
das árvores com braços de chocolate
a mão madrugada em flor
o cheiro
entre lábios e beijos da cidade do sofrimento,

absorvia-se a noite nos cigarros inventados
por um louco à janela do poema
vem do mar a claridade húmida das palavras
deitadas sobre os lençóis de linho
coitadas
as palavras
sem madrugada
sem carinho,

escrevia e deixou de escrever
nas paredes da inocência
brincava alegremente com os ossos de papel
a que chamavam esqueleto de livros
duzentas e seis páginas indesejadas pela boca doente
dos homens que lutavam contra a ditadura do aço inoxidável,

a garganta da morte mergulhava nas pequeníssimas gotículas de sémen
que das estrelas do sonho
acordava a aldeia encalhada no cais da solidão
e a janela do poema
partilha as flores que a terra alimentou
com cinco palavras ilegíveis.

(poema não revisto)

Os teus olhos em noite vestida de azul


Numa tela vazia
nasce a noite vestida de azul
descem do céu os anzóis clandestinos do sorriso

numa tela vazia
vou construindo a minha vida de nada
e no rio cansado que dorme à minha porta
brincam as sombras semeadas pela tua mão perfeitamente cintilante
que a noite vestida de azul ilumina
e transforma em corpo de mulher

azul
perfeitamente cintilante
a noite onde escreves os gritos de revolta
na areia fina e escura
o meu nome alicerça-se nos silêncios de Angola
azul
a noite
fina e escura
em corpo de mulher
numa tela vazia
sem cor
os teus olhos.

(poema não revisto)

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Cais do amor


Um dia vou esquecer-me das palavras
um dia os livros deixarão de me olhar
como todos os dias
nasce a luz em finíssimos fios de neblina

um dia a espada da morte
entra no meu peito
e deixo de ouvir a musicalidade das manhãs
um dia os livros
esquecerei os centímetros de solidão
e os milímetros de desejo

sem perceber que um dia
as palavras
um dia dos livros

os lábios doces da Lua apaixonada
viverei desacorrentado
sentado
esperando por ti no cais do amor...

(poema não revisto)

Retrato submerso no castanho cansaço


As outras coisas que a noite constrói
ou
à noite o vento come as nuvens do sonho
o coração de açúcar dói
desgraçados todos os pássaros sem nome
residentes na penumbra madrugada
hoje
hoje lembrei-me das tuas palavras do poema destruído
pelas manhãs de inverno
o rio
ou
hoje lembrei-me dos teus lábios de algodão

as outras coisas sem significado
desenhando silêncios na garganta do pôr-do-sol
um barco chora
magoa-se nas montanhas do amor
e da solidão dos cabelos castanhos da Primavera
ou
hoje
adormeço abraçado ao teu retrato.

(poema não revisto)