domingo, 29 de agosto de 2021

O homem invisível

 

Nesta cadeira se senta,

Enquanto lá fora,

Nas salgadas planícies do Infinito,

O homem invisível,

Agradece o pão

E o vinho.

Semeia na madrugada

As palavras de alento,

Os versos envenenados pela tempestade e,

Chora;

Incha-lhe o corpo a cada verso vomitado.

O silêncio entranha-se-lhe

Como o miolo do pão oferecido,

Vai à guerra,

Leva na algibeira as lágrimas

Que uma espingarda lança sobre a madrugada;

A cada palavra escrita,

Oferta de um cigarro embrulhado no veneno

Das viagens sem comandante.

O homem invisível

Padece de grandeza,

Pouco talento e,

Alguma subtileza.

Os gritos de ti

Nos gemidos de mim.

No espelho da maré

Desenha o mar

Envolto de laranjas e,

Ribeiras adormecidas.

Fodeu-se o boneco.

Em cada rua

Habita um boneco de trapos,

Filho do homem invisível.

Na garganta

O tumor que o vai matar,

Na solidão,

Na dor.

Tristes aqueles

Que pensam que o homem invisível

Dorme na alvorada,

Vive no jardim das pilas mortas e,

Avança com uma pedra

Contra a multidão que o apedreja com olhares.

Sofre com esta cidade,

Com a sujidade desta cidade,

O homem invisível,

Traz a morte tatuada

Na mão,

Também ela,

Invisível.

É fodido por todos,

Condenado por alguns e,

No Arremesso das palavras,

Às cinco em ponto,

A esplanada da vida silencia-se.

Se o coitado uiva,

É porque perdeu o sorriso

Nas ruas de uma Lisboa…

Há muito morta.

(morreu de quê?)

O telegrama diz que pelas dezassete horas,

Do dia que vai nascer,

Deixou de escrever palavras,

Pegou nos ossos,

Levantou freio e,

Regressou ao anonimato.

Pois é, meu amigo,

A cinza das tuas lágrimas,

Serão um dia,

A luz do meu amanhecer.

É parvo,

Quando pensam que ele,

O homem invisível,

Agradece o pão envenenado,

Não. Não.

A noite.

A sífilis esperança

De acordar um dia

Junto ao Rio.

Avança contra tudo. Todos.

As abelhas são eternas.

Os camuflados da insónia,

São um belo presente de aniversário;

Escura, maldita noite de dormir.

Outro gajo se ajoelhou

Na sombra que era sua,

Cansado,

Triste,

Este homem invisível

Resiste,

Ao desalento,

Ao infortúnio de viver.

Escreve canções

Nas janelas do abismo,

Sendo homem invisível,

Ouve as melodias do passado,

Como se fossem pedaços de pão

Descendo a calçada da saudade.

Pintou o mar

Na janela, também ela, invisível,

Melódica,

Triste,

Arrogante,

Pois o mar,

Salgado,

Vive-se de quê?

Do sono,

As chaves da despensa

Onde se escondem os duzentos e seis ossos

Das trezentas e vinte palavras.

Doce.

Amargo, silêncio.

A árvore,

Desce a calçada,

Levanta-se contra o lixo

Acumulado e,

Sem o saber,

Cansa-se da cidade onde habita.

O fim.

O princípio do fim,

Quando dois corpos balançam no baloiço

Do desejo.

Fodeu-se o boneco.

Fodeu-se o poeta,

Dono do boneco e,

Do homem invisível.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 29/08/2021

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