A caixinha envidraçada, suspensa
na madrugada, sentia-se o silêncio no espelho da mágoa, havia entre
nós o sentimento de que nunca mais regressávamos, partíamos..., e
Sentia-me escuro, desabafava com
o meu pai, e ele, não tenhas medo, não, meu filho,
Dentro da caixinha trazíamos
pedacinhos de saudade, poucos tarecos e amanheceres de nada,
partíamos para o desconhecido, partíamos sem sabermos o que nos
esperava, lá longe, ma Metrópole,
Pai? Sim filho, o que é... essa
coisa de..., Metrópole, meu filho? Sim, sim pai, é a nossa terra,
responde-me ele secamente, não percebi, pois sempre ouvi (com todas
as letras) dizer que a minha terra era Angola, não...
Não essa Metrópole, não essa
coisa de..., deixa lá pai, não faz mal, depois explicas-me, e
cresci, e vivi, ou melhor, fui vivendo sem perceber o significado de
Metrópole, esta angústia, este desassossego, sentia-me enforcado
numa sombra de uma das mangueiras do meu quintal,
Sentia-me escuro, desabafava com
o meu pai, e ele, não tenhas medo, não, meu filho, e eu
perguntava-me por era tão grande aquele paquete de papel..., pai?
Sim, filho, não tenhas medo, meu filho, não tenhas...
Não te sentes, desculpa?,
proibido fumar ou foguear ou todas as coisas terminadas em AR, o café
está amargo, poucas coisas sobrevivem às tuas mãos, os cigarros,
as orelhas postiças dos animais de brincar, desculpa?, não te
sentes, e hoje o café não DELTA, e hoje não, não te sentes,
circula, corre, caminha, veste-te de vento e vai até às nuvens de
fumo, faz-te homem meu rapaz, faz-te homem
- tantas vezes o ouvi, tantas
vezes, e no entanto as perdizes livres como as árvores nas planícies
junto ao mar, proibido, proibido morrer, e o beijos, hoje, amargos,
não DELTA,
faz-te de homem porque lá fora,
da rua, os animais perdidos na cidade inventada pelos silêncios
heterossexuais das navalhas de prata, coisas pouco belas, algumas
até, horríveis como as luzes dos carrinhos de choque que todos os
anos estacionam junto ao lago da miséria, os pássaros perderam as
asas e as abelhas hoje são doutoras, os barcos enferrujados e que
passavam as terdes no cais da desgraça, hoje
- hoje não DELTA, o café
amargo, cintilações de silicone suspensas nas difíceis noites sem
dormir,
desculpa?, proibido fumar ou
foguear, ouvia-o, tantas vezes, algumas vezes, coisas, loiças de
porcelana, pulseiras de marfim, dentes de carneiro, e cornos sem fim,
palavras, difíceis de engolir, quando a fome entra nos orifícios
cinzentos das marés de Setembro, o barco gigantesco faz-se à vida,
aproxima-se em pequeníssimas apalpadelas, e aqui, e ali, debaixo de
uma ponte de ferro, a criança descobre o amor quando vê dois
corações de vidro loucamente entrelaçados como se fossem dois fios
de arame, os calções desciam, desciam, desciam pelas escadas
transversais da colmeia, e são doirados, lindos, os olhos de Lisboa
à noite, ouvia-o
- hoje,
e deixamos de o ouvir quando o
barco se amarrou aos cais e as abelhas cor de mel desceram
silenciosamente até perderem numa pensão de meia-tigela esquecida
numa ruela sem janelas, árvores, gaivotas, velas, esquecida numa
ruela sem jornais, cortinados, velhas e velhos de chocolate com mãos
de açúcar, e hoje
- hoje não DELTA, o café
amargo, cintilações de silicone suspensas nas difíceis noites sem
dormir, e hoje os barcos enferrujados, velhos, apodrecidos, os barcos
enferrujados e que passavam as terdes no cais da desgraça, hoje,
hoje também são doutores, ouvia-o
desculpa?
- quantas horas tens de mar?
ouvia-o,
desculpa?, muitos dias, noites e
marés, não falando nas noites de descanso vividas em longínquas
coxas de oiro, e púbis de cetim, desculpa?, ouvia-o
- estás licenciado, por
equivalência és doutor, também
e pela primeira vez na vida o
miúdo percebeu o que era o amor, a paixão, Lisboa à noite, e
apetece-me recordar e escrever (Lisboa há noite), ninguém sobrevive
ao medo das calçadas que terminam no rio, ouvia-o, faz-te de homem
porque lá fora, da rua, os animais perdidos na cidade inventada
pelos silêncios heterossexuais das navalhas de prata, coisas pouco
belas, algumas até, outras não, e eu inventava-me de homem, comprei
um fato e uma gravata, e sapatos pontiagudos, estás lindo
- perfeito meu querido, perfeito,
e eu tal como os barcos, também
doutor, por equivalência,
- a carta de marinheiro,
e Setembro foi sempre um barco
que regressava de longe, um miúdo que descobria o amor, dois
corações de vidro loucamente entrelaçados como se fossem dois fios
de arame, os calções desciam, desciam, desciam pelas escadas
transversais da colmeia, e um paspalho qualquer aos gritos
- Lisboa, Lisboa, Lisboa,
Vivia
numa caixa de sapatos tamanho trinta e cinco, com seis anos vi e
calcei o meu primeiro par de botas, ouvia o meu pai
Temos
de compra umas botas ao rapaz,
Questionava-me,
perguntava-me,
O
que são botas?
Começava
o frio e eu estava habituado aos calções e às sandálias de couro,
não tínhamos nada, ou pior, tínhamos tudo aquilo que muitos não
tinham, mas como diz o OUTRO
AGUENTAMOS,
ENTÃO NÃO AGUENTAMOS? Claro que aguentamos e felizmente estamos os
três vivos e de boa saúde, eu sabia-o como sabia que seria difícil
andar com umas botas pesadíssimas e depois de as descalçar os meus
pequeninos pés pareciam pedaços de tecido, escuro, com bolinhas
escuras, e eu pensava
Deve
ser das noites de Inverno, pensava eu e hoje digo-o
E
pensava muito bem, pois o Inverno realmente enrija-nos os ossos e
alguns de nós ficamos mais espertos, outros, como eu, mais
aparvalhado, e ainda outros, coitados dos outros
Moribundos
como as geadas de Janeiro, passamos o Natal no interior da penumbra
branca, esguia, solidamente como a neve suspensa na grade enferrujada
da varanda com vista para a Praça, acordei cedo, corri
desassossegadamente para a inventada chaminé e dava-me conta que
nada existia dentro da bota que tinha deixado ficar sobre o fogão
como sempre o tinha feito em Luanda (não como uma bota mas com um
sapato), pensei
De
certeza a causa mais provável é a pesadíssima bota, depois
imaginei um senhor vestido de vermelho com barbas brancas, um pouco
barrigudo, olhei para a inventada chaminé e nenhuma dificuldade
encontrei para o dito senhor não me ter deixado alguma coisa,
enfureci-me e mentalmente insultei-o, e chamei-lhe todos os nomes
possíveis e imaginários, comecei e, Boi e terminei em filho da
puta, até que um dos meus irmãos mais velhos me explicou
Não
vês rapaz que ele ainda não tem a tua nova direcção, e confesso
que não percebi, Direcção, que direcção? O que é uma direcção?
E ele explicava-me pacientemente que era a minha nova morada e eu a
chorar perguntava-lhe Porquê, Porque viemos, e se fosse hoje ele
talvez me dissesse que o meu nome não constava da base de dados, mas
eu estava ontem, e ontem eu só tinha uma folha de papel selado com
vinte e cinco linhas, mas
Vou
entregá-la a quem? Ontem não se podia reclamar de nada, como ia eu
queixar-me do homem vestido de vermelho com barbas brancas e algo de
barrigudo? Não podia,
Mas
como diz o OUTRO
AGUENTAMOS,
ENTÃO NÃO AGUENTAMOS?
Eu
e os meus pais e os meus irmãos mais velhos e os nossos vizinhos e
os vizinhos dos vizinhos,
Todos
Aguentamos
e estamos vivos e de boa saúde.
Sem
muros, a seara livremente em movimento, a seara alegremente voando
como os teus doces dedos quando se entranham no meu branco cabelo, e
algumas das minhas folhas, ainda por escrever... vão-se alicerçando
nos braços da madrugada, venho de ti chorando porque percebi que as
cadeiras da vida, algumas, não muitas, estão a morrer, primeiro o
maldito bicho, depois... depois... a maldita morte, e depois, bom,
depois a tua aspereza dos violinos em flor, havia sons que mal
distinguíamos nos soníferas luzes da noite, e o castanho corpo
teu... amaldiçoado pelo cansaço
Tomba,
O
musseque engorda,
A
sanzala incha como pequenos frascos em vidro quando miúdo
colocávamos grilos e outros bichos, nãos os que matam as cadeiras
da vida, estes, estes apenas nos roubam os sonhos, roubavam, porque
hoje, nem bichos, nem sonhos, nem... nem o teu corpo castanho,
Tomba,
Entre
os charcos acabados de preencher como o impresso de candidatura com o
respectivo currículo, depois de entregue
Lixo,
Depois
de entregue
Nem
para limpar o cu serve,
“Brancooo
é papel e só serve para limpar o cu”, gritavam elas,
E
a sanzala inchava, crescia, multiplicava-se,
Lixo,
Sem
muros, como vértices de areia engolidos por sexos baratos,
regressava da feira da Ladra apenas com as cuecas e pouco mais, a
vida de difícil passou a horrível,
E
a diferença
Está
no número, de autocarro é um, de eléctrico... talvez seja outro,
mas todos vão dar ao mesmo, e todos me levavam de regresso, entrava
em casa, subia as escadas tão devagar que nem as ratazanas davam
pela minha presença, mas ela
Isto
são horas de chegares?
E
eu perguntava-me se existem horas certas para regressar a casa, mesmo
apenas em cuecas, se existem horas certas para as refeições...
Horas,
tem horas?
Não,
não as tenho, sou alérgico,
Mas
ela entre perguntas e respostas, entre o vai e o vou, fui e nunca
mais voltei à sanzala, cansei-me das viagens nocturnas pelas
avenidas transatlânticas com bancos em madeira e pássaros de
pedaços papel, fartei-me da cubata apenas só com uma porta de
entrada, e juro
Detesto,
Juro
que me irrita entrar e sair sempre pelo mesmo sítio, parece de
loucos, e de loucos, juro, preferia entrar pela porta e sair pela
janela, mas a cabra da cubata nem janelas tem, nem cortinados tem,
nem tecto onde suspender um par de calças
Tem?
Não,
não tem não,
E
entro em casa de cuecas na mão, ela
De
onde vens tu?
Venho
da lua, venho do mar, venho de onde não te interessa,
Adeus,
Era
Domingo, acordei cedo, sem muros, a seara livremente em movimento, a
seara alegremente voando como os teus doces dedos quando se entranham
no meu branco cabelo, e algumas das minhas folhas, ainda por
escrever... vão-se alicerçando nos braços da madrugada, venho de
ti chorando porque percebi que as cadeiras da vida, algumas, não
muitas, estão a morrer, primeiro o maldito bicho, depois...
depois... a maldita morte, e depois, bom, depois a tua aspereza dos
violinos em flor, havia sons que mal distinguíamos nos soníferas
luzes da noite, e o castanho corpo teu... amaldiçoado pelo cansaço
Tomba,
E
O musseque engorda...
A caixinha envidraçada, suspensa
na madrugada, sentia-se o silêncio no espelho da mágoa, havia entre
nós o sentimento de que nunca mais regressávamos, partíamos..., e
Sentia-me escuro, desabafava com
o meu pai, e ele, não tenhas medo, não, meu filho,
Dentro da caixinha trazíamos
pedacinhos de saudade, poucos tarecos e amanheceres de nada,
partíamos para o desconhecido, partíamos sem sabermos o que nos
esperava, lá longe, ma Metrópole,
Pai? Sim filho, o que é... essa
coisa de..., Metrópole, meu filho? Sim, sim pai, é a nossa terra,
responde-me ele secamente, não percebi, pois sempre ouvi (com todas
as letras) dizer que a minha terra era Angola, não...
Não essa Metrópole, não essa
coisa de..., deixa lá pai, não faz mal, depois explicas-me, e
cresci, e vivi, ou melhor, fui vivendo sem perceber o significado de
Metrópole, esta angústia, este desassossego...
Pai? Sim meu filho...! Será esta
a nossa última viagem? Não sei, não sei... não sei meu filho...
Francisco Luís Fontinha
Alijó
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