foto de: A&M ART and Photos
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Oiço-te na clandestina cidade, os edifícios
arderam, e todos os habitantes são neste momentos sombras, pedaços
de escuridão vagueando junto às ruas despidas, nuas, hirtas, como
vulcões de areia nas ranhuras da paixão,
Oiço-te e finalmente vou, como um esqueleto
transeunte formatado em compacto Linux, olho-me no espelho,
provavelmente o único objecto que restou dentro da casa onde habita,
por favor, olho-me enquanto te oiço, e cada vez mais percebo que
começas a não existir, que és uma cidade morta, uma cidade sem
peixes, sem pássaros, uma cidade apenas habitada com Rosas Bravias e
mais nada,
Paixão,
O amor, tal como a cidade
Ardem,
A paixão, oiço-o dentro de mim a vestir-se de
madrugada, descerra as persianas do desejo, abre a janela dos lírios
encarnados, oiço-o, oiço-o voluntariamente a descer do quinto andar
em queda livre, chega ao chão, apenas migalhas, cinzas e
pequeníssimos papeis que sobejaram do suicídio dele, o louco
marido, o apaixonado poeta que inventava cidades para viver, e vivia,
dormia nelas, e depois
Ardem,
E depois
A paixão,
Depois, nada, ninguém, hoje, hoje apetece-me mandar
foder a literatura e a poesia, e as musas inspiradoras, hoje, hoje
apetece-me vandalizar todos os livros que eram meus e deixaram de o
ser, hoje
E depois?
Ilumino-me, e oiço-o dentro de mim, ele, ele
veste-se pela madrugada, sai de casa, desce a calçada e entra na
primeira tasca que a madrugada inventa só para ele, senta-se numa
cadeira simples, coloca os cotovelos sobre uma mesa simples,
provavelmente da mesma família do que a pobre cadeira, sobre a mesa
uma velha toalha em plástico, e bebe, e bebe até voar sobre a cinza
da cidade ardida,
E depois?
A paixão, o amor, o falso amor, a velha paixão, a
saudade de uma cidade ainda não nascida, as escadas para os sótãos
sem janelas, os crucifixos mergulhados em oceanos de luz, e das
lâmpadas, eles, eles vêm-me buscar, carregam o meu corpo como se
fosse um pedaço de rocha, a neblina que se funde como o gelo no
Inverno de brincar, trazia calções invisíveis com suspensórios,
sandálias de couro já bastante diluídas nas chuvas torrenciais das
tardes de ninguém, e ninguém
E depois
E depois,
A paixão?
(Depois, nada, ninguém, hoje, hoje apetece-me
mandar foder a literatura e a poesia, e as musas inspiradoras, hoje,
hoje apetece-me vandalizar todos os livros que eram meus e deixaram
de o ser, hoje
E depois?)
Sou feliz assim, deixem-me, deixem-me... e...
depois? A paixão, os barcos a romperem quilhas sobre os telhados de
Belém, ao longe uma sanzala arde, o zinco funde-se e mistura-se com
o capim envelhecido, eu, eu brinco como um pequeno arco (aro da roda
de uma bicicleta), e oiço-o, oiço-o dentro de mim, ele sofre, ele
chora, ele amava, ama, apaixona-se e morre, como as estátuas, morre
sobre os cortinados da cidade ardida, pessoas, corpos amontoados
sobre as cabeças de xisto, a noite leva-a, e eu, eu feliz,
Hoje?
Hoje, hoje não acredito, acreditava, acreditava nas
lâmpadas de néon que as cidades vomitavam nocturnamente dentro dos
lençóis de esperma, havia sempre um livro entre nós, havia sempre
uma personagem a espiar-nos, e cansei-me, e fartei-me,
Feliz,
Hoje?
Fartei-me, cansei-me, e perdi-me em todas as cidade
onde vivi.
(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
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