quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A cidade literária

foto de: A&M ART and Photos

O estranho... é a roulote estar sempre só, ausente, vazia, o estranho é a simples placa imaginária sobre a porta de entrada
Núria,
Numa letra muito artesanal, quase em gatafunhos, percebe-se que o autor(a) é de pouca instrução, alguém, alguém que provavelmente aprendeu a escrever a palavra
Nuria, só, sem assento,
Uma roulote simples, como a que eu sempre sonhei, desde criança, também simples, de terra em terra, eu simples e só, percorrendo campos não governados, desbravando montanhas íngremes, construindo caminhos, veias, artérias, até chegar ao coração
E Núria
Sobre a porta de entrada de uma pobre roulote,
E depois do coração... o espirrar... até atingir o tecto nocturno do Céu, e uma substância mucosa descendo, muito devagar, as entranhas das costas que sobejaram de ti, depois de teres partido... e apenas a placa ficou à espera pelo teu regresso
Nuria,
Não regressaste, não foste mais observada pelos morcegos da noite... e dizem que hoje já não te chamas Núria,
Nuria?
Não, não eu,
E nunca o fui...
E nunca o foste...
Pergunto-me hoje, quem serias tu, se não eras a Núria...
Juro, juro que nunca fui Nuria,
E jurado está jurado, e como a noite depois de acordar fica... fica assim num estado de sonambulismo, assim num estado de embriaguez..., e tu, tu Núria
Não, não Nuria, não eu,
Tínhamos um burrinho que baptizamos de foguetão, vivia junto à roulote, era assim como devo eu explicar...
O guardião da roulote?
Isso, isso mesmo, faltava-me essa palavra, às vezes tenho necessidade de comer palavras, às vezes tenho a triste necessidade de comer livros, papeis... coisas, e às vezes
Nuria? Não, eu não Nuria,
E às vezes ouvíamos-o durante a noite em conversas desconexas com quem passava, o foguetão percebia de tudo um pouco, sabia que a noite construía sótãos despovoados sobre a cidade argamassa depois de todas as cinzas
Voarem?
Núria, és tu?
Não, não eu, não Nuria eu,
E elas iam-se acumulando num qualquer vão de escada, baixavam as calças, e a literatura parecia línguas de fogo na boca da inocente Núria,
Não
Eu
Não Nuria, eu, não...
E quando lhe perguntavam o que fazia uma velha sanita no patamar da escada que dava acesso ao quarto esquerdo, ele, timidamente... respondia
Núria,
Eu não Nuria, não eu,
E a roulote encostada ao velhíssimo plátano espera, desespera, acorda, adormece, e tal como a noite, e tal como as estrelas do teu cabelo, e tal
Núria, és tu?
Não, não Nuria,
E tal como a vida, as cinzas da cidade poeirenta em pequenos cubos literários, em pequenos movimentos do foguetão, que assanhava com a cabeça quando alguém por ele passava e não o cumprimentava,
E o comprimento da dita roulote não mais do que três metros e cinquenta centímetros,
Cumprimentos, e Núria,
Não
Não eu Nuria,
Núria apenas sabia que o comprimento, todas as manhãs, se sentava ao lado do foguetão, e conversavam, e conversavam... até que um dia a cidade literária deixou de respirar, e Núria
Não, eu não Nuria,
E Núria ficou eternamente nos meus abraços.

(não revisto – Ficção)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quinta-feira, 22 de Agosto de 2013

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