foto de: A&M ART and Photos
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Ambos o sabíamos, todas as noites, uma caneta
prateada, iluminada com tinta preta, misturava-se nas ranhuras do
papel, macio, do aparo, algumas vezes, gotas minúsculas de um
líquido não determinado, descia, lentamente, até que de muitas
gotas minúsculas de líquido... nascia uma poça longínqua de um
líquido... não determinado,
Sangue, não o era,
Suor?
Não acreditávamos,
Ambos ouvíamos o rosnar da locomotiva da cama
suspensa sobre quatro velhos tijolos, tínhamos nascido pobres,
continuávamos pobres, e amanhã, pobres seremos, sentados a uma mesa
com quatro pernas, range, ouve-se um estranho gemido de areia,
provavelmente, o mar a rondar-nos a casa, provavelmente, o homem do
chapéu de palha para saciar a sua sede, ele beberá de nós o mosto
disfarçado de silêncio, e não acreditávamos
Suor?
Os cigarros morriam no cansaço da tarde, gemias
como uma raposa quando prensada nas ranhuras das portas com vista
para o mar, víamos da fechadura um líquido esguio... e de seguida
vinha a noite, fazíamos amor debaixo dos cobertores de madeira que
embrulhavam a caixa onde o avô escondia a farinha de milho,
recordo-te recheada naquele intenso cheiro, ao longe, víamos o rio
Sul travestido de curvas com olhar de fonte de água sulfurosa, o
enxofre fazia-nos arder os olhos, e das nuvens de espuma, brancas
migalhas de saliva rodeavam-nos, e sentíamos no corpo a tristeza da
chuva ante de desfazer-se sobre os telhados da aldeia...
Sangue, não o era,
Suor?
Não acreditávamos,
O sino anunciava-nos o silêncio que acompanhava a
noite, tínhamos algumas horas para permanecermos juntos, e nunca
sabíamos se era a última, a última vez de nós, ela, a caneta,
introduzia-se vagarosamente nas entranhas coxas do papel de arroz,
sentia-se o perfume do rio Sul subir até sobrevoar a Cárcoda..., e
imaginávamos homens, e imaginávamos mulheres, e imaginávamos...
madrugadas voando entre pinheiros mansos e carvalhos ensanguentados
pelo desejo que o sono provocava em nós, escondidos
(de dentro da caixa da farinha sentia o teu corpo em
banhos de sol, mergulhavas nas ondas que a fonte sulfurosa das Termas
deixava nos teus seios de rosa encarnada)
E escondidos vivíamos os cigarros, e escrevíamos
ao toque do fumo a dilacerar-se nas asas de uma gaivota que se
prostituía lá para as bandas de Cais do Sodré, antes, muito antes
de entrarmos dentro da caixa da farinha, ainda antes de ser dia,
antes o enxofre provocar-te lágrimas no rosto que escondias do
espelho do quarto do meio, diziam que a prostituta era uma velha
carruagem que costumava transcrever no papel de arroz o percurso Cais
do Sodré a Belém, e por aí permanecia, até que uma magala
aparecia, vestia-se de mergulhador e descia às profundezas das
linhas circunflexas da vaidade,
E não acreditávamos
Suor?
E no próximo apeadeiro permaneciam até que fosse
dia, até que as gaivotas levantassem voo... fugissem para o mar, até
que renascias do interior da caixa da farinha, víamos o rio Sul, e
sentávamos-nos sobres as restantes pedras do Castro da Cárcoda...
olhavas-me, e segredavas-me que a solidão era sem qualquer dúvida
Amor, a solidão é a maior prova de amor que uma
flor como eu pode ter,
E de dentro da caixa da farinha, ambos, ouvíamos os
sons que todos ouvimos quando habitamos apartamentos defeituosos em
cidades defeituosas...
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
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