domingo, 16 de junho de 2013

Não percebo agora o significado da desordem...

foto: A&M ART and Photos

Se dançávamos? Tínhamos acabado de regressar da longínqua sanzala de vidro com cubatas revestidas em saudade e pedacinhos de medo, aquém e além, uma voz fria gritava-nos, e arremessava-nos pedras invisíveis, e eu criança, envergonhado porque não entendia os orgasmos em sombras de café que os adultos deixavam esquecidos nos bancos do jardim, uma penumbra manhã perdi o esqueleto de mim, e de dentro do guarda-fato, divertia-me a pincelar tons mastigáveis na solidão de uma casa pequeníssima, com cinco janelas, e uma chaminé, e durante a noite ouvíamos as lágrimas sorrido parede abaixo... até se derramarem no soalho embrulhado em humidade e caruncho, que em alturas de desassossego, ouvem-se, ouvem-se em pequenas festas como fazíamos quando vivíamos na cidade dos desejos e dos sonhos e dos pequenos mares que entravam em nós, e nunca, nunca mais nos abandonavam,
Voltar?
Se dançávamos, não percebo agora o significado da desordem...
Voltar, em vez de descer, subir, sentar-me sobre o telhado, e ouvir a conversa dos pássaros nas tertúlias tardes dentro das mangueiras, debaixo delas, duas crianças experimentavam a força utilizando um cordel fino, tão fino como o cabelo castanho do velho Domingos, Voltar? Não percebo a desordem dos meus braços, não percebo a rouquidão da minha voz, e... principalmente, tu existes dentro de uma lata de conserva, vestida com um lindo vestido em papel verniz, colorido, e quando chove, ouvem-se-te em pequenas chamas de luz os batimentos de um coração apaixonado, Voltar... nunca, jamais, para quê e porquê?
Se dançávamos? Às vezes...
Voltar e não encontrar as ruas onde as tínhamos deixado, durante a noite, homens, mulheres e algumas crianças, utilizando a única força disponível, mudaram de local todas as ruas da cidade, o mar, hoje, já não está lá, lá, hoje, está um campo de milho que perdemos no horizonte enquanto observamos, e onde havia, antigamente, campos de milho, está lá, hoje, o mar, só, sem ninguém a chapinhar na água salgada e na areia branca, e ninguém nos avisou, e dizem-nos que até a nossa casa mudou de sítio, deslocou-se avenida abaixo, e foi literalmente engolida pela fome, e pelo ódio...
Porquê regressar! Se dançávamos? Olho-me no espelho e vejo o rosto, o meu rosto de menina, de mulher apaixonada, desiludida com as manhãs quando desapareces de mim e ficas só entre papeis velhos e outras fotografias, tão velhas, tão... imagens sem significado, oiço-me de encontro ao espelho, reflecti-me
Evaporaste-te através dos orifícios que sobejavam na cubata, espetávamos pregos sobre um velha carica, servia para isolarmos o mesmo orifício da humidade e dos espíritos malignos dos retratos semeados sobre a mesa-de-cabeceira, raramente conseguias segurar-te e acabavas por tombar sobre o passeio em cimento, dos joelhos, pequenos riscos, cromados gelatinosos aos morangos de um dos canteiros ainda não destruído pelo canino REX,
E porquê se me reflecti num espelho com coração de xisto, dele conseguia-se ver o rio e os socalcos encurvados por carris que nos transportaram até hoje, aqui, à sombra de uma velha cubata, esquecidos na sanzala trémula, vagueando como imagens no lençol nocturno onde brincávamos antes de nos deitarmos, era noite, e o teu rosto imagina-se liberto das minhas mãos, e o teu rosto... também ele, como as ruas e as casas, mudaram-nos de sitio, e hoje habita numa outra cubata, numa outra sanzala... num outro País de sonhos desencantados, falsos sonhos, de um falso espelho; tu
Se dançávamos?
Todas as noites, tu é que não te recordas de mim, da música, e das árvores e dos candeeiros suspensos no tecto do céu...
Claro, claro que dançávamos...

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

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