foto: A&M ART and Photos
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Ler-me-ás?
pergunto-me quando acordo, pergunto-me quando
adormeço não dormindo, e percebendo que não te entendo, olho-vos
no espelho do extremo oriente, subo sobre a cama, e à minha frente
existe um velho guarda-fato, um espelho, engorda-me, dilacera-me e
dizes-me que ontem havia um beijo suspenso na almofada que habita no
cadeirão junto à estante dos velhos livros, cada um, uma personagem
dentro dele, cada um, uma história cansada, velha, e os dentes de
marfim do velhíssimo crocodilo em pau preto transportado do outro
continente, atravessou o oceano, e no interior de algumas bicuatas...
chegou intacto à mesa da sala de estar, anda por lá, deambulando
como morcegos enquanto a noite come os sonhos das crianças nascidas
em Angola, brinca, dorme, não consegue sonhar, e tantas vezes lhe
oiço as palavras – O menino dá, mamã, o menino dá... - e as
bolachas, aos pouco, entravam boca adentro com a ajuda de uma
esferográfica, e quando acordávamos, ambos, via-mos nas paredes da
sala as inscrições hieroglíficas que o tal menino tinha deixado,
Estupor, estrupício, e malandreco,
ler-me-ás? E quando acordávamos, ambos, a
insignificante questão, olhava-te, e lia-te as poucas palavras que
os teus olhos de cereja transpiravam, e perguntava-me
Ler-me-ás? Absorviam-nos as noites mal iluminadas,
não dormíamos, não, e tínhamos medo das recordações também,
elas, como as bicuatas, pequenas, tão pequenas que mal davam para
encher um pequeno caixote de madeira, e tudo, em nós, pequeno,
pequeno amor, pequenas palavras, e grandes dores, em pequenos peitos,
com pequenos corações... ainda acreditas que o bicho consegue-se
libertar das bolachas?
o miúdo crescido, enorme, não pequeno, vês? O
miúdo atrofiado, chato, indigente, e insignificante como as pedras
da calçada da Ajuda, não ajuda nada recordares-me que debaixo do
rio havia garrafas de vodka estacionadas, sumo de laranja e gelo, por
cima de nós, no andar superior, uma ponte em aço atravessava-nos, e
como uma espada de areia, unia-nos os corpos separados anteriormente
por uma onda gigante, tão gigante... que comeu metade da cidade e
dos sonhos, tão gigante que nos obrigou a escondermos-nos debaixo do
rio, entre garrafas e cadeiras em plástico, mesas também em
plástico, e às vezes, tímidas, tremiam, dançavam como línguas de
vento sobre a fogueira do desejo
Estupor, estrupício, e malandreco,
o corpo do texto, ele enlouquecido como o cio dentro
dos peixes, “Liberation Serif” e de tamanho doze, o aquário de
ti sobre o meu corpo ancorado ao travesseiro adormecido era
literalmente içado pelo guindaste em desassossego que brincava,
domingos à tarde, pelo desterro do abrigo a que chamavam de porto de
mar, desembarcávamos depois de longas caminhadas e à nossa volta
Machimbombos em rotações milimétricas pelas mãos
do avô Domingos, um pequenos cordel de fino cristal voava sobre as
mangueiras despidas, sombreando-se-lhes pequenas cristas de galo
desenhadas com os lápis de cor que alguém tinha adquirido numa
superfície comercial num qualquer musseque da preferia da cidade,
era noite, descia-nos como desejos esperando corpos nus, e o velho,
cansado, entrava em casa como um petroleiro a entrar na barra e a
fazer-se ao cais,
e umas das vezes foi estampou-se contra um dos
candeeiros semeados no centro do passeio revestido com pequenas
pedras e palavras...
Ler-me-ás?
claro que não...
(não revisto, ficção)
@Francisco Luís Fontinha
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