sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Ao léu entre abraços e cansaços


Os cansaços que a vida me deu
de abraços em pedaços de sol
os carrascos cansaços de uma manhã ao léu
como as cartas do Pacheco (Luiz Pacheco, Cartas ao Léu)
os silêncios das espigas poesia
entre cansaços e carrascos
os teus e os meus abraços
dentro de uma barcaça em dias de alegria,

Havia
havia poucas ou nenhumas cartas de amor
que palavras eu diria
à lareira a saudade que ardia
da lareira o sorriso de uma bela e linda flor
havia cigarros de conserva com molho de tomate
havia
e eu sabia que das minhas pobres mãos nascia
e crescia
um lindo menino de nome alicate
coitado coitadinho
enfezado como os orgasmos da menina fantasia,

Os cansaços que a vida me deu
poucos
abraços e beijos às bocas que o velho com cabeça de abobora
semeou e plantou e dizimou
não sabendo que eu sabia
que havia
laranjas e limões para a sobremesa
disfarçada de melancia,

E havia
homens amantes do sol
e mulheres que amavam a lua
e eu
não sabia
e eu
percebia
e eu
farto da escrita de porcaria
que faço
e invento sem saber e perceber
que um dia vou morrer,

E alguém vai dizer
escrever
que grande merda este gajo nos deixou
porque os cansaços que a vida me deu
me tirou
e o amor derretido em paixão
arde docemente à lareira
a mesma lareira onde se aquece a flor
disfarçada de amor
que da minha mão
me amou
ou vai amar,

quando perceber
que eu
que eu sou filho do mar...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

A caixinha de sapatos

Vivia numa caixa de sapatos tamanho trinta e cinco, com seis anos vi e calcei o meu primeiro par de botas, ouvia o meu pai
Temos de compra umas botas ao rapaz,
Questionava-me, perguntava-me,
O que são botas?
Começava o frio e eu estava habituado aos calções e às sandálias de couro, não tínhamos nada, ou pior, tínhamos tudo aquilo que muitos não tinham, mas como diz o OUTRO
AGUENTAMOS, ENTÃO NÃO AGUENTAMOS? Claro que aguentamos e felizmente estamos os três vivos e de boa saúde, eu sabia-o como sabia que seria difícil andar com umas botas pesadíssimas e depois de as descalçar os meus pequeninos pés pareciam pedaços de tecido, escuro, com bolinhas escuras, e eu pensava
Deve ser das noites de Inverno, pensava eu e hoje digo-o
E pensava muito bem, pois o Inverno realmente enrija-nos os ossos e alguns de nós ficamos mais despertos, outros, como eu, mais aparvalhado, e ainda outros, coitados dos outros
Moribundos como as geadas de Janeiro, passamos o Natal no interior da penumbra branca, esguia, solidamente como a neve suspensa na grade enferrujada da varanda com vista para a Praça, acordei cedo, corri desassossegadamente para a inventada chaminé e dava-me conta que nada existia dentro da bota que tinha deixado ficar sobre o fogão como sempre o tinha feito em Luanda (não como uma bota mas com um sapato), pensei
De certeza a causa mais provável é a pesadíssima bota, depois imaginei um senhor vestido de vermelho com barbas brancas, um pouco barrigudo, olhei para a inventada chaminé e nenhuma dificuldade encontrei para o dito senhor não me ter deixado alguma coisa, enfureci-me e mentalmente insultei-o, e chamei-lhe todos os nomes possíveis e imaginários, comecei e, Boi e terminei em filho da puta, até que um dos meus irmãos mais velhos me explicou
Não vês rapaz que ele ainda não tem a tua nova direcção, e confesso que não percebi, Direcção, que direcção? O que é uma direcção? E ele explicava-me pacientemente que era a minha nova morada e eu a chorar perguntava-lhe Porquê, Porque viemos, e se fosse hoje ele talvez me dissesse que o meu nome não constava da base de dados, mas eu estava ontem, e ontem eu só tinha uma folha de papel selado com vinte e cinco linhas, mas
Vou entregá-la a quem? Ontem não se podia reclamar de nada, como ia eu queixar-me do homem vestido de vermelho com barbas brancas e algo de barrigudo? Não podia,
Mas como diz o OUTRO
AGUENTAMOS, ENTÃO NÃO AGUENTAMOS?
Eu e os meus pais e os meus irmãos mais velhos e os nossos vizinhos e os vizinhos dos vizinhos,
Todos
Aguentamos e estamos vivos e de boa saúde.

(texto de ficção)
@Francisco Luís Fontinha