Festas Felizes
segunda-feira, 24 de dezembro de 2012
O espelho curvilíneo da melancolia
Todas as noites me afundo
num oceano de saudade, mergulho, indefeso, procuro a sombra marítima
que brinca dentro do meu peito, sem jeito para alguma coisa, todas as
noites me afundo, de saudade, na saudade, viver sem saber o que é o
medo, viver, sem saber... o que é
algum dia, qualquer dia,
ouvirás as vozes que deixaram dentro da gaveta dos sonhos, as tuas
mãos,
o que têm as minhas mãos
pai?
as tuas mãos mergulham,
todas as noites, de saudade em saudade, de peito em peito, foge-te o
fôlego, as coisas belas morrem, afogam-se no oceano de saudade, às
vezes, outras, nem por isso, e procuras-me dentro dos pinheiros
mansos da floresta das mães abandonadas, as flores, as árvores, e
todos os filhos das manhãs de inverno, aqui, agora, procuras-me e eu
escondo-me
o que têm pai?
olhas-me no espelho
curvilíneo da melancolia absorvida pela pele esbranquiçada de um
esqueleto sem sono, penso
desfaço, não desfaço,
e acabo por concluir que a barba é um acessório desnecessário, o
cabelo tomba no jardim com os canteiros alinhados, o tapete, a
carpete, alguns dos tacos devido à humidade levantaram-se, de pé,
em tesão, e às vezes, e às vezes
o que têm pai?
tropeço, linearmente vou
de encontro frontalmente contra as flores de cetim junto aos
cortinados de linho, hesito
o que têm pai? Penso, e
às vezes
pareço um pedaço da
pano com remendos e buracos, como o telhado do palheiro, telhas em
perfeitas condições, e telhas
o que têm as telhas pai?
e telhas com os membros
inferiores fracturados, moribundas, que deixam passar as lágrimas do
céu, as tuas mãos mergulham, todas as noites, de saudade em
saudade, de peito em peito, foge-te o fôlego, as coisas belas
morrem, afogam-se no oceano de saudade, às vezes
todas as noites me afundo
num oceano,
todas pai?
todas, todas as noites.
(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó
domingo, 23 de dezembro de 2012
Maria Feliz
Nasci numa aldeia
cinzenta, e todas as pessoas traziam na cabeça uma flor de lótus,
uma pequena ribeira caminhava sem destino entre os canaviais e os
choupos velhos e caducos que viviam em comunhão de bens, felizes no
casamento, tinham três filhos, duas raparigas, e eu
eu continuo sem saber o
que sou,
as raparigas desde muito
cedo começaram a fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão
enfaixado nas amoreiras e silvais que depois de cair a noite
desapareciam como desaparecia o fumo dos cigarros do meu irmão,
sisudo, chato, um travesti de trinta e dois anos, bancário,
regressava a casa depois de um longo dia de trabalho, apanhava o
eléctrico, contava as pombas até chegar à porta de entrada do
prédio, entrava, começava a subir as escadas tranquilamente, no
patamar do primeiro andar ainda era o Carlos, subia, subia, e quando
chegava ao quinto andar,
agora sei o meu nome,
Maria Feliz, entrava em
casa, descalçava os sapatos altíssimos e colocava as pernas sobre a
mesa de mármore que jazia no centro da sala de estar, pegava no
comando da aparelhagem sonora, carregava no PLAY e sempre o mesmo CD
no seu interior
agora sei o meu nome,
Wordsong (AL Berto)
e ele,
ela,
tinham saudades dos
tempos da infância quando apenas tinham como memória uma aldeia
cinzenta, apodrecida, a madeira das traves e dos barrotes, de vez em
quando, pingava um líquido sujo e espesso, e quando lhe passava o
dedo e levava-o à boca
ela percebia que eram
lágrimas com mel,
chovia dentro de casa,
tínhamos um cão a que dávamos o nome de REX, e quase sempre o gajo
desobedecia-nos, traquina, as raparigas desde muito cedo começaram a
fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão enfaixado nas
amoreiras e silvais que depois de cair a noite desapareciam como
desaparecia o fumo dos cigarros do meu irmão, e nós
deliciávamos-nos com os poemas
eu continuo sem saber o
que sou,
ele
sisudo,
ela
levantava-se do sofá,
acabava de despir-se, e quando se olhava no espelho e percebia que
não tinha sobre si outra qualquer roupa, nem vestígios dele, corria
até à casa de banho, abria a torneira da água quente, deixava-a
borbulhar como uma panela ao lume com estrelas e pedaços de néon, e
aos poucos e silenciosos sonhos do mar, começava numa carícia
intensiva, até se cansar, até perceber que ela era ela, até
ele
sisudo,
ela
ela percebia que eram
lágrimas com mel que o seu corpo derramava como se fossem a seiva
envenenada das árvores de papel, sisudo, e pendurava no armário o
Carlos, e a lua apoderava-se dela, e a lua escrevia no corpo dela,
viste o Carlos?
ele
sisudo,
ele
chato,
ele, que todos os dias se
levantava de madrugada, Maria Feliz ia ao guarda-fato, tirava o
Carlos, vestia-se, raramente tomava o pequeno-almoço, deixa-a sobre
a cama até que o cair da noite se agarrava às janelas do quinto
andar,
sisudo,
agora sei o meu nome,
agora percebo a cor da aldeia onde nasci, vivi, cresci..., e quase
morri,
ela
viste o Carlos?
chato, sisudo, as árvores
que nem os malditos pássaros encarnados queriam sentar-se sobre
elas, é triste, era triste a solidão dos dias, e percebia que as
minhas irmãs
não gostam de mim,
sempre me odiaram, viste o Carlos? Apenas palavras para os poucos
transeuntes ouvirem, porque nas minhas costas
o Carlos é um chato, e
sisudo, e
as ruas deixavam de
pertencerem-me, e
ela
viste o Carlos?
e elas sempre souberam
que nunca existiu nenhum Carlos, e elas
as raparigas desde muito
cedo começaram a fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão
enfaixado
numa rua de Cais do
Sodré, e quase
morri.
(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó
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