quarta-feira, 4 de julho de 2012

A saliva do amor

A alma encontrou
trabalho
finalmente

nas muralhas curvas do sexo
a saliva do amor
misturada na noite de flor queimada
em papelinhos de néon

a rua entupida de chulos
e beatas tontas e ratazanas voadoras e espantalhos barrigudos
comedores de palha seca e erva doirada
da lezíria
a erva levemente enfeitada
alimentando a beleza das mamas da tia Margarida
“que deus a tenha em descanso debaixo das tábuas da insónia”
nas curvas sinuosas do sexo

A alma encontrou
trabalho
finalmente

(não é sexta-feira e já estou teso)
nas muralhas curvas do sexo
ressequidos pelas valetas dos vapores de iodo
e do prato de enxofre que não se cansa de arder
enquanto a noite dentro da estrada sinuosa da vida
distrai-se abrindo e fechando janelas de brincar
finalmente
finalmente encontrei trabalho
numa montra da rua do Alecrim
um balcão de chocolate
com mesas de algodão doce
eu vi
eu via a noite travestida de lua cheia

saltar para o interior
de um buraco inoxidável
filho da cidade dos desejos
de danças e telegramas e palavras de mandioca
e oiço a voz da morte
à lareira da poesia com pequenos goles de incenso

deixei de ouvir-te
obedecer aos teus caprichos e imposições
deixei de de ser eu
e fui
e transfigurei-me num edifício em ruínas
livremente entre o ácido e o aço
e quatro paredes de vidro
sem fotografias
sem literatura
de água docemente uiva de dor
sem braços sem pernas
sem cabeça

o espelho da fechadura
recorda-se da morte quando beija as agulhas sibiladas do silêncio
os cigarros deixaram de passear na biblioteca
e vou alimentando de palavras embebidas em vodka os meus pulmões de cetim
adormecidos à beira-mar
um passeio entre duas páginas
e o poema malcriado fica de castigo
“cabeça para baixo e as rimas estão proibidas de irem à janela”

e curiosamente
hoje mergulhei nos rochedos
quando ouvi as doze badaladas insípidas
das marés envenenadas pelas facas de vidro

(A alma encontrou
trabalho
finalmente).

terça-feira, 3 de julho de 2012

FEBRE COM PINTINHAS DE SARAMPO

Oiço a cidade a desaparecer para lá da noite
onde se perdem as almas sem nome
de todas as algibeiras construídas em cetim doirado
e mesmo assim
e mesmo assim há quem não tenha medo de atravessar a fronteira
não regressando nunca mais ao fim de tarde junto ao rio

as peles flácidas que transportam nos lábios
onde em letreiros gatafunhados se podem ler os desejos da noite
antes das almas sem nome atravessarem a fronteira e sentarem-se sobre as pedras
de nylon com que um esqueleto de óculos escuros constrói as redes para a apanha da solidão
e do chá e das torradas
antes
antes de ele se deitar dentro da sepultura de cordas e pregos de marfim
antes do cerimonial complexo à iniciação dos sem abrigo com cigarros de pluma em oiro

oiço o meu nome transformado em “filho da puta”
é a cidade travesti em direcção ao outro lado do rio para lá da noite
gajas chamam-me e eu recuso-me
curiosamente hoje e ontem “FEBRE COM PINTINHAS DE SARAMPO”
antes
antes de deitar-me dentro da sepultura de cordas de marfim
vi um homem louco com uma cabeça de areia embrulhada em correntes de aço
e do chá e das torradas
as redes com que apanhava debaixo da madrugada
pedacinhos de solidão com restos de esperma
e eis que para lá da noite
a cidade cresce nas peles flácidas dos olhos pedrados no pólen

(curiosamente hoje e ontem “FEBRE COM PINTINHAS DE SARAMPO”
curiosamente hoje e ontem “FEBRE COM PINTINHAS DE SARAMPO e nunca fui feliz”)

eu vi a noite comer os letreiros gatafunhados
e as frases começavam a misturarem-se com os restos esquecidos no passeio dos infelizes...
“vendo todo o recheio da minha biblioteca – motivo Fartei-me dos livros”
“vendo braços e pernas e dentes de madeira – Bom estado”
eu vi
a noite a transformar-se em palavras além da fronteira dos infelizes
com febre e papeira ou sarampo ou gajas a gritarem do outro lado do rio
para mim
eu o gajo mais infeliz do cardápio da infelicidade
eu vi
tu viste
a cidade a desaparecer para lá da noite...

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