terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Ai o amor

Uma duas três… quatro gaivotas suspensas no teto da minha sala,
- O quê? Estás bêbado sussurra-me uma voz de papagaio que julgo vir do cortinado da janela da sala sem vista para o mar,
E pergunto-me o que fazem quatro gaivotas suspensas no teto da minha sala e ninguém e ninguém responde, como sempre, nunca ninguém responde às minhas inquietações,
- Precisas de um psiquiatra,
E eu preciso é de uma psicóloga que perceba
- Gaivotas Francisco?
Que sou perfeitamente normal como os plátanos do jardim, tive sonhos, adormeço e acordo, amo,
- Ai o amor…
E fui criança e fui menino e brinquei de papagaio de papel na mão à volta das mangueiras,
Uma caixa de sapatos com paredes de vidro e uma tampa encarnada de onde descem beijos amestrados e tartarugas marrecas, ai o amor… o amor é fodido segundo Miguel Esteves Cardoso, para mim, o amor é uma caixa de sapatos cheia de neve que há muitos anos um menino parvalhão revolveu atulhar até ao teto encarnado,
- Precisas de uma psicóloga meu rapaz,
E preciso
- Gaivotas Francisco?
Preciso urgentemente de um médico legista que faça do meu corpo a praia do Mussulo, preciso urgentemente de um médico legista que desenhe barcos e petroleiros e putas em Cais de Sodré no meu corpo, preciso
- Entro no Texas e as putas amam-me Sempre me amaram as putas da noite e os paneleiros dos jardins de Belém,
Preciso Eu preciso de fazer alguma coisa para que a minha vida deixe de ser uma merda, quarenta e seis anos, desempregado, quase sem abrigo, sem futuro segundo a minha mãezinha,
- E o que será de ti desgraçado depois de eu morrer,
Entro no Texas e as putas amam-me e as putas gostam de poesia, sentava-me e fazia versos nos lábios de meninas adolescentes,
- Ai o amor…
O Miguel que é fodido e eu uma caixa de sapatos com teto encarnado,
- E preciso urgentemente de uma psicóloga, preciso de uma psicóloga que analise os meus desenhos, E desde que uma me mandou desenhar uma árvores e como resposta e como resposta
Que eu estava apaixonado
Está loucamente apaixonado, foda-se pensei eu, o que tem o desenho de uma árvore para estar apaixonado?,
E estava e desde essa data fiquei com raiva aos psicólogos porque através de desenhos conseguem desvendar os nossos segredos,
Quatro gaivotas suspensas no teto da minha sala, Porquê Caralho?,
- O quê? Estás bêbado sussurra-me uma voz de papagaio que julgo vir do cortinado da janela da sala sem vista para o mar, e pareço a Cristina da Comissão das lágrimas de António Lobo Antunes com as malditas vozes na cabeça,
- Porquê Cristina? Questiona-me o Lobo Antunes e confesso que não sei, e confesso que nunca vivi em Luanda, e confesso que nunca vivi na Vila Alice nem no Bairro Madame Berman, tudo mentira senhor António Lobo Antunes, tudo mentira,
Tão pouco sei onde fica Angola,
- Mas estas vozes,
E preciso urgentemente de um médico legista que do meu corpo construa um papagaio de papel para brincar nos céus de Luanda,
- Porquê Cristina? Questiona-me o Lobo Antunes e confesso que não sei, Não sei… mas que estão quatro gaivotas suspensas no teto da minha sala lá isso estão,
Estás bêbado sussurra-me uma voz de papagaio que julgo vir do cortinado da janela da sala sem vista para o mar, e as putas do Texas amavam-me, e os barcos do Tejo amavam-me, e as gaivotas do Tejo amavam-me, e os paneleiros de Belém
- Verdade senhor António Lobo Antunes… por favor não me torture mais, verdade que nunca vivi em Luanda nem na Vila Alice nem no Bairro Madame Berman, juro por deus que nunca acreditei,
Que as putas do Texas me amassem, que os barcos do Tejo me amassem, que as gaivotas me amassem, porque nunca fui amado e porque nunca vivi em Luanda,
- Ai Cristina As malditas vozes,
E quer lá saber o António Lobo Antunes de um gajo que acredita que tem quatro gaivotas suspensas no teto da sala, e quer lá saber o António Lobo Antunes de um gajo que acredita ter vivido em Luanda, que diz ter brincado na Vila Alice e no Bairro Madame Berman,
. Tudo mentira Cristina, Tudo mentira,
E quer lá saber o António Lobo Antunes de um gajo que diz
- Preciso urgentemente de um médico legista,
Ter brincado no mar do Mussulo,
O Miguel que é fodido e eu que é uma caixa de sapatos com teto encarnado, e estranho, nunca perguntei ao António Lobo Antunes o que é para ele o amor…
- O que é para ti o amor Cristina O Lobo Antunes enquanto folheia a comissão das lágrimas.
Ai o amor, quarenta e seis anos, desempregado e sem futuro e uma psicóloga que afirma que eu estou loucamente apaixonado… porque desenhei a puta de uma árvores sentada no banquinho do Texas e nos lábios de adolescentes escrevi versos que nunca ninguém leu, versos que ninguém lê, e que os paneleiros dos jardins de Belém adoravam em noites de lua cheia.
O que é para ti o amor António?

(texto de ficção)

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A carta de Amor

Há coisas que nunca devem ser feitas na vida,
Não me refiro à noite em que me passei da cabeça e queimei a grande parte dos meus desenhos e textos e poemas numa lareira do Bairro do Hospital quando tinha vinte e poucos anos e mais tarde percebi que Nikolai Gógol tinha feito o mesmo com “Almas mortas”,
Mas refiro-me a uma carta de amor E já sinto nas vossas cabecinhas a pergunta pertinente Porquê uma carta de amor?,
Porque numa noite de copos na Ajuda onde seis marialvas bebiam e comiam, incluindo eu, um dos presentes, bom rapaz e muito honesto e muito simples e coitado… que carregava nos ombros uma história de abandono por parte da mãe e um pai todos os dias embriagado com uma ninhada de irmãos, e de instrução quase nenhuma porque abandonou a primária nos primeiros anos para ganhar para a casa
- Porquê uma carta de amor?,
Para ganhar para a casa as letras para ele pareciam os carris da linha férrea Pinhão-Régua em assobios dentro dos socalcos do Douro, e com ele guardava religiosamente uma carta da namorada que tinha chegado nessa tarde, e pensava ele que dos cinco eu era o que tinha mais juízo, e juro que quando me olhava ao espelho acreditava ser um menino de igreja que depois da solene deixou de frequentar, não incluindo as faltas à catequese da Benigna, mas adiante, pede-me
- Podes ler-me esta carta se fazes favor E eu cá para mim Já te lixaste,
Pede-me e já a carta poisava nos seios da minha mão, começo silenciosamente a despi-la e aos poucos pela janela do envelope começam a acordar corações desenhados a marcador encarnado e a palavra Amo-te a todo o comprimento do lençol e milhões de beijos,
- Na Ajuda onde seis marialvas bebiam e comiam,
E amor eterno até que a morte Até que a morte nos separe,
- Então Fontinha o que diz?,
Respondo-lhe que era melhor ele não saber, Porque eu precisava de tempo para inventar uma estória, e fazendo o papel de leitor de uma carta de amor disse-lhe os maiores disparates incluindo o fim do namoro e ao cair do pano um par de cornos, e claro que nada daquilo existia na carta, mas ele acreditou,
- Não chores pá Gajas há muitas Dizia-lhe um dos marialvas,
E chorava e chorava e chorava,
E foi muito difícil convencê-lo que tudo não passava de uma brincadeira de cinco gajos que bebiam e comiam… e estavam fartos das noites da Ajuda,
- Então Fontinha o que diz?,
Que há coisas que nunca devem ser feitas na vida, uma delas, gozar com os sentimentos dos outros…


Francisco Luís Fontinha

23 de janeiro

E que pegasses na minha mão e me levasses a ver o mar e com os teus lábios escrevesses nos meus lábios
- Amo-te e estou apaixonada por ti,
Escrevesses nos meus lábios o encanto da noite quando todas as luzes dormem, quando todos os barcos sonham, quando todos os pássaros voam,
E era tudo o que eu queria ouvir de ti, Hoje.

23/01/2012
Francisco