Carlota Maria acordara com o barulho ensurdecedor
que o vento provocava nos braços de Alberto, dentro dela, Humberto,
cavaleiro, passeava-se de armadura de papel e montado no seu cavalo
de oiro com finos olhos de porcelana, recordava os tempos infinitos
vividos numa guerra inventada, num País inventado, onde todos os
dias era Inverno, uma criança brincava junto aos pés de Alberto,
empoleirava-se num triciclo com assento em madeira e velhos ferros
das intempéries chuvosas alicerçadas às raízes que faziam
estremecer o coitado do Alberto,
De vez em quando, Alberto balançava as
grandessíssimas mãos de ébano sobre os cabelos movediços de
Carlota Maria, ela
Vestia-se simplesmente, tinha olhos que pareceriam
diamantes e da boca ouviam-se-lhe os gemidos dos gonzos que
suspendiam os dentes em marfim, nas traseiras, a criança com uma
vara metálica procurava o mar, Alberto fingia que dormia, enquanto
dentro da Carlota Maria um silêncio de prata começava a clarear,
percorrendo cada milímetro dela, o menino gritava por ela
Ela, docemente nos abraços do cavaleiro, não a
ouvia, e se a ouvia, fazia ouvidos de marcador, e eu, eu permanecia
sentado, alguns metros de distância de Carlota Maria, percebi que
havia um menino em cima de um triciclo e que procurava o mar, como um
outro menino, num outro continente, que tanto procurou o mar que se
cansou, e hoje
Não consigo ouvir, ler, nada, a palavra mar,
Ela dançava com as mãos poisadas na cintura de
sílabas mortas, e quando o cavaleiro Humberto entrava dentro dela
com toda a sua fúria, ela
Chorava,
Ela chamava pelo Alberto, mas este, entretido com o
menino do triciclo pensava;
E quando eu morrer?
O que será do menino? O que vai acontecer à
Carlota Maria?
Ela gemidamente estremecia com os soluços do
cavalo, e o mar nunca apareceu,
E quando eu e a Carlota Maria e o Humberto e o
menino, todos, morrermos? O que será do narrador sentado no muro de
xisto a cerca de cem metros de nós...
Ela, docemente nos abraços do cavaleiro, não a
ouvia, e se a ouvia, fazia ouvidos de marcador, e eu, eu permanecia
sentado, alguns metros de distância de Carlota Maria, percebi que
havia um menino em cima de um triciclo e que procurava o mar, como um
outro menino, num outro continente, que tanto procurou o mar que se
cansou, e hoje sons estranhos dentro de mim, o medo,
O Alberto tem medo de voar, Carlota Maria adora voar
mas apenas se com ela for o cavaleiro Humberto e o seu cavalo de
palha, e o menino
Não sei, prefiro o mar e todos os barcos que
brincam no seu ventre, como os bebés, antes de nascerem, comunicam
através de sons, ténues limas de luz, poucos os percebem, mas sei
que um dia alguém vai pegar no menino e partir, e apenas ficará um
velho triciclo com um apodrecido assento em madeira,
E sinto-o, o medo
O Alberto pálido agacha-se e embrulha o menino nos
braços, Carlota Maria sorri aos encantos do cavaleiro Humberto, e
eu, eu sentado no muro de xisto a contemplar a feliz Driamara, leve
como as penas das gaivotas que andam à boleia nos mastros dos barcos
com bandeiras capazes de comerem as palavras do querido Alberto que
de um feixe de iões se materializam contra uma parede de vidro,
O medo de voar e perdermos tudo o que temos, e
amemos, e perdermos o silêncio húmido das tardes de Primavera,
vestia-se simplesmente, tinha olhos que pareceriam diamantes e da
boca ouviam-se-lhe os gemidos dos gonzos que suspendiam os dentes em
marfim, nas traseiras, a criança com uma vara metálica procurava o
mar, e o menino pela madrugada em gritos sussurrantes
Pai, Pai Pai,
Sim filho,
Tenho medo,
Medo? De que tens medo meu querido filho!
Sonhei com uma casa que se chamava Carlota Maria,
dentro dela andava um cavaleiro com uma armadura de papel, o cavalo
era lindo
Mas tive medo,
E nas traseiras da casa havia um sobreiro que se
chamava Alberto, e em frente a eles um homem com um chapéu estranho,
fumava cigarros e sentava-se no muro de xisto, havia ervas, pássaros,
e só me lembro que eu brincava com um triciclo à procura do mar
como uma vara metálica,
Não achas este sonho estranho, Mãe?
Driamara responde-lhe que os sonhos era assim, às
vezes estranhos, longe, muito longe, como os dias debaixo das nuvens
felizes e infelizes, apaixonadas e não apaixonadas, todas, e
sinto-o, o medo
O Alberto pálido agacha-se e embrulha o menino nos
braços...
E as marés em sofrimento dos longínquos corredores
das planícies inventadas, tal como as guerras, numa tela de gesso
com acrílicos mergulhados em quatro simples paredes de amêndoa. E
de todos, apenas senti pelo pelo Humberto.
(ficção não revisto)
Francisco Luís Fontinha