E sonhas com quê, tu?
Visivelmente cansada, sentia dentro de mim, as
pedras e os riachos, e ouvia canções poéticas dos lábios
sonolentos dos pássaros amaldiçoados, tristes às vezes, alegres
poucas, doía-me o peito e trazia qualquer coisa estranha na
respiração ofegante dos meus silêncios, acordava as rosas e os
pontos cardeais, pegava no Norte e caminhava até que o tempo se
perdia em mim, entranhava-se-me como se entranhou a tua boca
(E não sonhava, mas via uma menina vestida de mar
com cabelos de vento, mas via um jardim com um banco de madeira, e
imaginava, olhava-te dentro de mim e sabia que te sentavas lá, em
todas as minhas ausências, loucuras, birras de criança, de menina
mimada, sabia-o, sentia-o, ouviam-se-lhes as masmorras apaixonadas e
que o tempo come como se de uma simples sandes de presunto se
tratasse, ouvia o chamamento do sol e das nuvens embebidas na vodka
made em Sacavém, e comias-me como comias os cigarros e os versos
desgovernados das mãos do velho com braços de maré, e depois, uma
chuva finíssima de vodka sobre os telhados cinzentos da cidade de
marfim),
No meu púbis,
E sonhava com círios de desejo quando se
disfarçavam de Primavera, e sonhava com gaivotas enroladas nas velas
entre mastros de veleiros e o fim de tarde, despedíamos-nos das
descalças horas insignificantes, oferecias-me um beijo na face
obscura da minha pele, e
E eu desaparecia entre a neblina de espuma que as
aranhas deixavam ficar junto ao rodapé, o pavimento pintava-mo-lo de
encarnado, como os vestidos da tia Margarida sobre o palco da
danceteria libertina, anárquica, como todas as flores que
conhecemos, havia sempre um perfume de solidão nas tuas mãos, havia
qualquer coisa de estranha nas tuas mãos, meu querido
No teu púbis mergulhavam os poemas das madrugadas
convulsas e engasgadas nas lâmpadas da danceteria e ouviam-se-lhes,
às mesas de cartão, os suspiros embriagados das meninas em flor,
descia o rio, e mergulhávamos na lareira dos pedacinhos de sílabas
com pequenas asas de açúcar, e meu querido, meu querido poeta
vadio, um dia transformado de noite
Desapareceste como desaparecem todas as paixões,
(pelo buraco da fechadura)
E ninguém percebeu que eu, vestida de doce
Catarina, docemente iluminada pela claridade das palavras revoltosas,
contra ele, no caderno dele, da sebenta dele, eu construí a cidade
dos sonhos com todos os pedacinhos de desejo que adormeceram em todos
os bancos de jardim, com ripas alguns, de cimento outros, e assim
nasceram os peixes e as algas e a trovoada, e a chuva, e a madrugada,
e também, eu
Criei a saudade,
E a dor,
E sonhas com quê, tu? Não sonho, diz-me tu, também
não sonho, também deixei de sonhar, também eu tal como tu,
desistir de rir, da saudade, e do prazer de escrever, e
principalmente
Deixei de me sentar no banco de jardim com ripas de
madeira, puxar de um cigarro e imaginar-te deitada sobre os lençóis
da minha pele esbranquiçada, polida, magra, emagrecida pela dor e
pela doçura das noites envenenadas com cianeto e sonhos de anda,
E a dor, e criei a saudade
(pelo buraco da fechadura)
E agora desculpa-me, mas vou vestir as asas e voar,
se voltarei? Não sei, não... sei, E sonhas com quê, tu?
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
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