domingo, 3 de março de 2013

As paixões de areia

E sonhas com quê, tu?
Visivelmente cansada, sentia dentro de mim, as pedras e os riachos, e ouvia canções poéticas dos lábios sonolentos dos pássaros amaldiçoados, tristes às vezes, alegres poucas, doía-me o peito e trazia qualquer coisa estranha na respiração ofegante dos meus silêncios, acordava as rosas e os pontos cardeais, pegava no Norte e caminhava até que o tempo se perdia em mim, entranhava-se-me como se entranhou a tua boca
(E não sonhava, mas via uma menina vestida de mar com cabelos de vento, mas via um jardim com um banco de madeira, e imaginava, olhava-te dentro de mim e sabia que te sentavas lá, em todas as minhas ausências, loucuras, birras de criança, de menina mimada, sabia-o, sentia-o, ouviam-se-lhes as masmorras apaixonadas e que o tempo come como se de uma simples sandes de presunto se tratasse, ouvia o chamamento do sol e das nuvens embebidas na vodka made em Sacavém, e comias-me como comias os cigarros e os versos desgovernados das mãos do velho com braços de maré, e depois, uma chuva finíssima de vodka sobre os telhados cinzentos da cidade de marfim),
No meu púbis,
E sonhava com círios de desejo quando se disfarçavam de Primavera, e sonhava com gaivotas enroladas nas velas entre mastros de veleiros e o fim de tarde, despedíamos-nos das descalças horas insignificantes, oferecias-me um beijo na face obscura da minha pele, e
E eu desaparecia entre a neblina de espuma que as aranhas deixavam ficar junto ao rodapé, o pavimento pintava-mo-lo de encarnado, como os vestidos da tia Margarida sobre o palco da danceteria libertina, anárquica, como todas as flores que conhecemos, havia sempre um perfume de solidão nas tuas mãos, havia qualquer coisa de estranha nas tuas mãos, meu querido
No teu púbis mergulhavam os poemas das madrugadas convulsas e engasgadas nas lâmpadas da danceteria e ouviam-se-lhes, às mesas de cartão, os suspiros embriagados das meninas em flor, descia o rio, e mergulhávamos na lareira dos pedacinhos de sílabas com pequenas asas de açúcar, e meu querido, meu querido poeta vadio, um dia transformado de noite
Desapareceste como desaparecem todas as paixões,
(pelo buraco da fechadura)
E ninguém percebeu que eu, vestida de doce Catarina, docemente iluminada pela claridade das palavras revoltosas, contra ele, no caderno dele, da sebenta dele, eu construí a cidade dos sonhos com todos os pedacinhos de desejo que adormeceram em todos os bancos de jardim, com ripas alguns, de cimento outros, e assim nasceram os peixes e as algas e a trovoada, e a chuva, e a madrugada, e também, eu
Criei a saudade,
E a dor,
E sonhas com quê, tu? Não sonho, diz-me tu, também não sonho, também deixei de sonhar, também eu tal como tu, desistir de rir, da saudade, e do prazer de escrever, e principalmente
Deixei de me sentar no banco de jardim com ripas de madeira, puxar de um cigarro e imaginar-te deitada sobre os lençóis da minha pele esbranquiçada, polida, magra, emagrecida pela dor e pela doçura das noites envenenadas com cianeto e sonhos de anda,
E a dor, e criei a saudade
(pelo buraco da fechadura)
E agora desculpa-me, mas vou vestir as asas e voar, se voltarei? Não sei, não... sei, E sonhas com quê, tu?

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

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