terça-feira, 31 de janeiro de 2012
Quando tudo é pouco
59,4 x 84,1– Francisco Luís Fontinha
Estarei eu Louco?
E o que importa é caminhar na rua
Quando acorda a manhã
E sorrir
E fingir que sou feliz
Acreditando que da noite descem vapores de iodo
E poisam sobre o meu corpo amarrotado pela solidão
O que importa mesmo é fingir
E sorrir
E fingir
Que sou louco
E fingir que tenho tudo
Quando tudo é pouco
Estarei eu Louco?
A loiça cinzenta da tarde
Balança o gaspacho sobre a loiça cinzenta da tarde, e oiço as vozes
- Despe-te Despe-te dizia-me ele antes de apagar o candeeiro a petróleo, antes de cerrar os cortinados, e eu despia-me e começava a dançar sobre a mesa rodeada de cinco tísicos a beberem cerveja,
E oiço as vozes que acordam junto à casa de banho sem janela, erguem-se e vêm ter comigo e sentam-se ao meu lado a olharem o gaspacho sobre a loiça cinzenta da tarde,
E eu pergunto-me Porquê gaspacho? Nunca estive no Alentejo, e minto, passei rumo ao Algarve numa noite de sonambulismo, sentei-me em Lisboa e quando acordo
- Estou cansada queixava-se a Miquelina enquanto fazia manobras perigosas a contornar as garrafas vazias sobre a mesa caquética, triste, morta de sono, e com uma filha para alimentar,
A marina de Faro, abro os olhos e meia dúzia de andantes da noite cumprimentam-me,
- Boa noite,
Boa noite coisa nenhuma e ao longe o cheiro dos pássaros prontos a levantar e senti-me como quando o meu pai me levava aos domingos a passear junto à pista do aeroporto, e eu imaginava sombras de nuvem em algodão doce no bico dos pássaros, e quando regressava a noite o gelado no Baleizão, sentava-me na esplanada e um malabarista de circo fazia-me rir,
- Boa noite E hoje ele deixou de sorrir, e hoje ela recorda-se da mãe quando entrava em casa de madrugada e tropeçava na algibeira dos sonhos, olhava-a Porquê mãe, e nunca lhe respondeu até que deixou de dançar sobre as mesas e evaporou-se no cais de Alcântara,
Lembro-me perfeitamente da minha mãe quando rompia de madrugada pelo casebre adentro e em passinhos de lã para não me acordar subia aos tropeços os degraus ingrimes até ao segundo andar, e nunca me deu um beijo, e nunca
- Olá filha,
Tive mãe porque hoje percebo que sou filha das mesas de um bar onde mulheres como a minha mãe dançavam até de manhã e quando chegavam a casa cansadas entravam e fingiam dormir agarradas a uma garrafa de uísque, e nunca
- Olá filha,
A marina de Faro, abro os olhos e meia dúzia de andantes da noite cumprimentam-me,
- Boa noite,
E olho a placa e leio Faro Fodi-me eu enquanto procurava os cigarros e questionava os andantes da noite se realmente o chão que eu pisava era Faro, e que sim e que se eu não queria ir beber umas cervejas
- Olá mãe,
E fui e até hoje nunca mais vi a minha mãe, e hoje ela recorda-se da filha quando entrava em casa de madrugada e tropeçava na algibeira dos sonhos, olhava-a Porquê filha, e nunca lhe respondi até que deixei de dançar sobre as mesas e evaporei-me no cais de Alcântara,
E eu despia-me e ele apagava o candeeiro a petróleo e cerrava os cortinados e sobre uma mesa com uma filha para alimentar dançava e dançava e dançava e quando acordava a manhã, não cais de Alcântara, não Faro nem marina, não os pássaros com nuvem de algodão doce no bico, não os andantes da noite,
A minha filha que me olhava e me perguntava Porquê mãe,
E nunca, e nunca consegui responder-lhe,
- Olá filha,
Balança o gaspacho sobre a loiça cinzenta da tarde, e oiço as vozes
- Olá mãe,
E oiço as vozes que acordam junto à casa de banho sem janela…
(texto de ficção)
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