terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Flores parvas

Todas as flores são parvas
E parvas são as minhas palavras
Quando comidas por abelhas gananciosas
Depois do almoço

Das flores parvas
Nascem as minhas palavras parvas
Que um parvalhão
Semeia na ardósia junto à ribeira

E eu
E eu sou tão parvo como as flores parvas
Porque semeio as minhas palavras
Porque sou eu o parvalhão
Sentado numa pedra
A olhar as flores parvas e as abelhas gananciosas

A comerem as minhas palavras
Que substituíram por pão
Depois do almoço

Malditas flores parvas
Que comem as minhas palavras
Parvas
Que eu semeei na ardósia junto à ribeira

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Prisão

Roubaram-me o sorriso
E acorrentaram-me à solidão
Fizeram das ruas um corredor sem juízo
E das janelas um sonho sem coração

Roubaram-me o mar
E as palavras que tinha para escrever
Fizeram das ruas um cemitério sem luar

Fizeram das ruas uma noite para esquecer
Roubaram-me o amanhecer
E a vontade de amar

Roubaram-me o sorriso
E acorrentaram-me à solidão
Fizeram das ruas um corredor sem juízo
E das janelas uma prisão

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A janela do meu olhar

Estou triste
Muito triste
E ninguém para me ouvir
Ninguém e ninguém para me abraçar
Estou triste
Muito triste
Sinto-me um pedacinho de merda
Que toda a gente passa sem pisar
E toda a gente e toda a gente tem medo de tocar
Estou triste
Muito triste
E nem o vento e nem o mar entram pela janela do meu olhar…

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

E o que são pássaros?

Entretenho-me sentado numa pedra a escrevinhar pontos de luz na paisagem adormecida e triste e cansada que desce a montanha e sobe o meu corpo até desaparecer no teto da saudade,
Entretenho-me a chamar os pássaros poisados nas árvores doentes no outono cortinado que suspende os sorrisos da manhã, e eu deixe de saber, quando os pássaros fingem voar e todos eles mortos junto ao rio, e eu entretenho-me sentado numa pedra, a escrevinhar pontos de luz e a desenhar marés no pôr-do-sol, e quando descem montanha abaixo as nuvens emagrecidas pela tempestade, eu, eu fico sem saber o que fazer, e não faço nada, entretenho-me a contar os pássaros,
- Hoje não pássaros para contar, queixa-se o meu corpo no ranger de ondulações e pontos de luz e lâmpadas abandonadas no contentor da despensa, na parede da cozinha o calendário despido com uma mulher despida, e sempre me recordo de ver a mesma mulher e sempre me recordo de ver os dias iguais abraçados a semanas iguais, e as horas,
E as horas engasgadas na penumbra chaminé da garganta do tejo, entretenho-me sentado numa pedra a escrevinhar pontos de luz na paisagem e a contar os pássaros.
- Pergunto, Pássaros? E o que são pássaros?
Pontos de luz que voam e se escondem nas coxas das palmeiras, pensava eu,
E pássaros não pontos de luz, e pássaros não rabiscos que brincam nas costas da maré até desaparecerem nos lábios das gaivotas apaneleiradas e que se passeiam junto ao Jerónimos,
- Pássaros, pensava eu, pontos de luz, e uma sombra desce vagarosamente as pálpebras do automóvel de luxo e em sorrisos e com sôfregos acenos nos candeeiros Filho vai uma voltinha?, Entretenho-me sentado numa pedra a escrevinhar pontos de luz na paisagem adormecida e triste e cansada que desce a montanha, e finjo que não oiço as vozes que acordam dos automóveis de luxo, e tropeço na pedra onde me sento e entretenho-me a contar os pássaros,
Confesso que não sei o que são pássaros,
- Pássaros, pensava eu, Vai uma voltinha filho?, e corria em direção ao tejo e deixava de sentir o chão debaixo dos pés, e imobilizava-me e fazia esforços desgovernados para perceber porque os pássaros me queriam comer, se eu,
Se eu tão pouco sabia o que eram pássaros, perguntava-me, O que são pássaros?,
- Pontos de luz embriagados no desejo de corpos que vagueavam nos jardins de Belém, e eu corria e eu corria até que percebia que o chão se tinha evaporado e eu sossegado dentro do tejo a contar pontos de luz e rabiscos no céu-da-boca de um paquete que regressava de Luanda,
Deixei de me entreter e sentar-me numa pedra a contar pontos de luz e a imaginar pássaros dentro de automóveis de luxo com voz de centeio ao cair da noite, e deixei de fumar cigarros e deixei de viver,
- Vai uma voltinha filho?, Filho da puta respondia-lhe eu enquanto assustava os pássaros poisados nos arbustos dos jardins de Belém, o rio começava a encolher sobre a toalha do jantar, a mesa abria os braços, eu abria os braços, e os pássaros, e os pássaros que ainda hoje não sei o que são,
- Os pássaros em coro de igreja a gatafunhar nas paredes do fim de tarde que me amavam,
E hoje, e hoje sem saber o que são pássaros, e hoje odeio os pássaros que Pássaros?, pensava eu, pontos de luz, e uma sombra desce vagarosamente as pálpebras do automóvel de luxo e em sorrisos e com sôfregos acenos nos candeeiros Filho vai uma voltinha?,
- Filho da puta respondia-lhe eu enquanto assustava os pássaros poisados nos arbustos dos jardins de Belém, Entretenho-me a chamar os pássaros poisados nas árvores doentes no outono cortinado que suspende os sorrisos da manhã, e eu deixe de saber, quando os pássaros fingem voar e todos eles mortos junto ao rio,
E sentado numa pedra entretenho-me a olhar os carros de luxo a evaporarem-se no nevoeiro quando os pássaros fingem voar e todos eles mortos junto ao rio…

(texto de ficção)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)