Este longínquo silêncio a que chamam de mar e que poucos o olham enquanto este dorme dentro de um pequeno livro de poesia, o mar está revoltado (as palavras fluem e o poema cresce como crescem as algas dos teus cabelos), ouve-o e deita-te sobre ele, veneno da madrugada que aos poucos semeia nos teus lábios o beijo,
E nos lábios da maré
habitam as primeiras nuvens da manhã, dos tristes barcos que brincam nos cadernos
quadriculados da noite, e como sabes, nem todas as estrelas são em papel, e
como sabes, nem todas as estrelas são estrelas,
E todos os beijos, são
beijos?
Nem todos os beijos são
beijos, nem todas as estrelas são em papel, mas o longínquo mar sabe que dos
teus olhos saem todas as madrugadas as palavras que o poema ao longo do dia vai
mastigando, depois a fome
Das palavras?
Do vento que transporta
as palavras.
Um dia este mar há-de
morrer. Deus queira que sim; oiço os apitos dos petroleiros que pé ante pé, um
passo para a direita, outro, agora para a esquerda, masturbam-se na esplanada
de um bar, o velho desenha shots de uísque na âncora tarde de Cais do Sodré, e
sempre que chovia, uma puta de cigarro na mão suplicava por lume, que depois de
cigarro aceso, em frente ao comboio para Belém, destroçava,
E sabíamos que o jantar
era peixe no forno porque depois de sentados em volta da quadriculada mesa, nunca
mais voltávamos a Belém, portanto, a última Ceia, peixe no forno com linguiça,
batata assada, sumo de laranja e pão saloio,
Um cigarro de intervalo,
da algibeira os tristes gemidos das ratazanas que sabíamos que habitavam dentro
dos muros amarelos, mas que nunca tinham sido observadas, apenas sabíamos
porque diziam que ouviram dizer…
Ontem, viste-as?
Às palavras?
Nas janelas as laranjas que
sobejaram do desejo, e nas laranjas tínhamos sempre o maldito mar revoltado (as
palavras fluem e o poema cresce como crescem as algas dos teus cabelos),
Viste-as?
Viste-os?
O perfume, tínhamos o
perfume que um deles tinha palmado a um qualquer gajo na feiro do relógio,
Fotografia, amor?
Livro, moço, compre-me
este livro…
Que raio, nunca tive
sorte com as laranjas, e, no entanto, o perfume recordava-me uma sombra que
deixei há muito tempo dentro de um pequena caixa de sapatos,
Ontem ou hoje?
Amanhã, amanhã o sol
brilhará,
E a lua, meu amor?
Um barco que se afunda, um
marinheiro que morre enquanto fuma o cachimbo e da corda suspensa no
machimbombo, uma pequena lâmina de luz é lançada contra o pôr-do-sol,
escrevem-me cartas
Pedaços de um livro.
Somos nuvens, somos
sombras que cambaleiam na parada do inferno, o sol fazia com que o alcatrão se revoltasse
contra nós e depois das chuvas, regressavam as laranjas que outrora tinham sido
esquecidas numa qualquer janela de um qualquer sótão,
Suspenso nas frestas da
paixão,
Um velho crucifixo que
nos olhava.
Olhas-me porquê?
Enquanto o dia ainda não
cresceu dentro de ti,
Somos,
E ontem tínhamos o vento
que transporta as palavras; hoje só temos as fotografias das laranjas que
alguém deixou ficar nas vidraças da noite,
No entanto,
O amor inventa nos teus
olhos os poemas das estrelas de papel, e ontem tínhamos o vento, mas hoje, hoje
temos este longínquo silêncio a que chamam de mar e que poucos o olham enquanto
este dorme dentro de um pequeno livro de poesia…
Alijó, 17/10/2022
Francisco Luís Fontinha
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