terça-feira, 18 de outubro de 2022

Os cobertores do silêncio

 Nunca percebi o que fazem estes crucifixos suspensos nas feias paredes desta espelunca com clarabóia para a cidade, depois do sexo, quase sempre, um cigarro se suicidava no segundo andar e do quarto ao lado, em pequenas frases de final de tarde, chegavam-me os tristes gemidos dos corpos embebidos no fenol da solidão. Pela janela entreaberta, regressavam as dálias e margaridas que alguém esqueceu na paragem do autocarro.

Desenha-me!

Escrevo-te deste alegre silêncio sabendo que tens na janela do teu olhar as sombras que dormem sobre mim, escrevo-te deste longínquo continente para que percebas que enquanto estes crucifixos habitarem esta espelunca, e quando me pedes para desenhar-te,

Invento as larvas que roubam as palavras que semeio no teu peito, e nunca vais perceber porque fugiram as acácias da minha mão.

Alegra-te meu rapaz,

Amanhã há caracóis.

E enquanto estes crucifixos habitarem esta espelunca, o teu filho não saberá que nos barcos, um dia, o pai escondeu as escadas de acesso ao sótão, depois, tínhamos de caminhar até à estação mais próxima,

Estou grávida,

Ontem,

E víamos o sol a esconder-se na montanha,

Pensas em quê?

Amanhã, filho…

E sabíamos que aquela montanha tinha no peito o maior luar de Agosto, depois desenhava-te enquanto o teu corpo se escondia nos cobertores do silêncio, e imagina, quando percebeu que ia ser pai, puxou de um cigarro e em pequenos sorrisos,

Adormeceu na paragem do autocarro,

O machimbombo afrouxou, e num passo de esgrima, ficou acorrentado até aos dentes, nos braços, trazia as cordas com que às vezes utilizava para subir à montanha, e desta, conseguia ver o filho deitado sobre a cama rabugenta e infestada se sémen que da tarde tinha adormecido sem compreender que alguns milímetros têm vida, como os pássaros, como as dálias e as margaridas,

Sorrisos teus até aos lábios.

Olhou-os e benzeu-se. E víamos o sol a esconder-se na montanha, pensas em quê?

Amanhã, filho…

Em gritos, que não pensava, que não sabia onde tinha esquecido os cigarros prateados e que às vezes utilizava para carregar a espingarda da insónia, mas depois lembrou-se que dos milímetros silêncios do filho, tinha escutado o uivo do Ujo, até que a morte os levou para aquele triste e caquéctico sótão, onde além deles, habitavam borboletas, ratazanas e teias-de-aranha…

Somos só nós a partir de hoje,

E o pôr-do-sol deixará nos teus olhos as estórias das noites junto ao rio, e o cansaço acorrentou-o à ponte metálica que hoje dorme neste labirinto de livros, e nas pálpebras descobriu as insónias da manhã,

Um dia, um dia descerão dessa parede recheada de frestas todas as fotografias que deambulam pela casa, e esse milímetro de vida,

Somos só nós a partir de hoje e algumas teias-de-aranha,

Finou-se ao décimo quinto dia.

Amanhã, filho…

Nunca percebi o que fazem estes crucifixos suspensos nas feias paredes desta espelunca com clarabóia para a cidade, mas sei que lá longe há um rio que nos olha e nos quer levar para o mar.

E no mar, far-se-á homem como todos os milímetros de vida.

 

 

 

Alijó, 18/10/2022

Francisco Luís Fontinha

(ficção)

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