quinta-feira, 5 de julho de 2012

Podia ter sido uma rua da cidade de Luanda

Podia ser feliz
ou um barco
sem vela
podia ter sido uma rua da cidade de Luanda
entupida no lixo deambulante sobre a noite
podia ter sido o mar
o amor
o eterno veneno
a dor
podia
podia ter sido uma abelha misturada com a chuva
ou a paixão do silêncio

ai se eu fosse as amêndoas da tarde
em forma de poema
sobre a morte acidental

podia ser feliz
ou um livro de poesia
adormecido na prateleira da insónia
(podia ter emprego e dinheiro e assim já me conheciam
e assim
e assim já me cumprimentavam...)
podia ter sido o capim
e as mangueiras
e os triciclos de madeira

mas quis deus
que eu fosse um caixote
com paredes de vidro made in China
com coração de árvore
quis ele
quis deus

(podia ter emprego e dinheiro e assim já me conheciam
e assim
e assim já me cumprimentavam...)

que eu falasse como os pássaros
e gritasse como as nuvens
e desenhasse nas paredes da infância
a morte simplesmente bela
toda nua
à janela
quis ele
quis ele que eu fosse um poema sem palavras.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

A saliva do amor

A alma encontrou
trabalho
finalmente

nas muralhas curvas do sexo
a saliva do amor
misturada na noite de flor queimada
em papelinhos de néon

a rua entupida de chulos
e beatas tontas e ratazanas voadoras e espantalhos barrigudos
comedores de palha seca e erva doirada
da lezíria
a erva levemente enfeitada
alimentando a beleza das mamas da tia Margarida
“que deus a tenha em descanso debaixo das tábuas da insónia”
nas curvas sinuosas do sexo

A alma encontrou
trabalho
finalmente

(não é sexta-feira e já estou teso)
nas muralhas curvas do sexo
ressequidos pelas valetas dos vapores de iodo
e do prato de enxofre que não se cansa de arder
enquanto a noite dentro da estrada sinuosa da vida
distrai-se abrindo e fechando janelas de brincar
finalmente
finalmente encontrei trabalho
numa montra da rua do Alecrim
um balcão de chocolate
com mesas de algodão doce
eu vi
eu via a noite travestida de lua cheia

saltar para o interior
de um buraco inoxidável
filho da cidade dos desejos
de danças e telegramas e palavras de mandioca
e oiço a voz da morte
à lareira da poesia com pequenos goles de incenso

deixei de ouvir-te
obedecer aos teus caprichos e imposições
deixei de de ser eu
e fui
e transfigurei-me num edifício em ruínas
livremente entre o ácido e o aço
e quatro paredes de vidro
sem fotografias
sem literatura
de água docemente uiva de dor
sem braços sem pernas
sem cabeça

o espelho da fechadura
recorda-se da morte quando beija as agulhas sibiladas do silêncio
os cigarros deixaram de passear na biblioteca
e vou alimentando de palavras embebidas em vodka os meus pulmões de cetim
adormecidos à beira-mar
um passeio entre duas páginas
e o poema malcriado fica de castigo
“cabeça para baixo e as rimas estão proibidas de irem à janela”

e curiosamente
hoje mergulhei nos rochedos
quando ouvi as doze badaladas insípidas
das marés envenenadas pelas facas de vidro

(A alma encontrou
trabalho
finalmente).