segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A sala de espera

Na sala de espera um frenesim de vozes, uma senhora porque o governo já devia ter caído, outra, que vai cair amanhã, uma outra, junto ao umbral da porta, dizia,
- se cair eu apanho-o,
E eu apenas queria fazer a depilação. Nada de mais. É assim tão difícil?
Vou à janela e puxo de um cigarro, eu sei que não devia fumar, mas também não devia ouvir certas coisas e oiço, e das conversas que se construíam na sala de espera de nada me interessavam; eu só pretendia fazer a depilação…
Em cima de uma mesa as revistas do costume, as perguntas parvas do costume,
- beijei o meu namorado, será que estou grávida?
E eu que já nem me lembro da ultima vez que me veio o período,
- será que estou grávida? Mas não beijei o meu namorado…
No rádio alguém pede Tony Carreira,
- que mau gosto,
Na parede um crucifixo olha-me, deseja-me, e eu a ficar sem jeito,
- talvez porque hoje tenho a saia curta de mais,
Começo a sentir-me possuída com aquele olhar, incomodada, mas…
- mas Cristo também devia desejar mulheres,
E eu feliz por me sentir desejada…
O cigarro musicalmente vai percorrendo as avenidas da minha espera, e do fumo, do fumo vejo as sílabas a saírem pela janela, em baixo, na rua, um homem muito mal vestido pede cigarros,
- um cigarrinho,
E as sílabas a construírem frases, e das frases… palavras que se encaixavam na minha mão, e a minha mão não um livro,
- uma mão,
Um livro perdido na janela do primeiro andar, um livro onde não posso escrever mais nada, e ele aos tropeções nos paralelos da calçada,
- minha senhora, um cigarrinho por favor…
Não fumo,
Na sala de espera um frenesim de vozes, uma senhora porque o governo já devia ter caído, outra, que vai cair amanhã, uma outra, junto ao umbral da porta, dizia,
- se cair eu apanho-o,
E eu nem o apanho nem o derrubo, eu só quero fazer a depilação.
- será que estou grávida? Mas não beijei o meu namorado…
E o meu namorado junto ao rio a contar algas, e de cigarro na boca envia mensagens às gaivotas, e as gaivotas não até mim, eu no primeiro andar, desejada por um crucifixo há não sei quanto tempo naquela posição, esquecido na parede juntamente com as fendas,
- há quanto tempo se formou o universo?
Nada de mais. É assim tão difícil?
(texto de ficção)

A doce almofada da noite

Adormeço os meus lábios na doce almofada da noite,
A minguada sombra do meu corpo projetada na parede, Estou tão magro, mãe!, pergunta-me porquê, e que nem eu sei, segredo-lhe com um beijo na face amarrotada dos anos e das canseiras da vida,
Provavelmente das geadas de inverno, provavelmente dos socalcos do Douro, provavelmente da idade, provavelmente porque envelheço duas vezes ao ano, adormeço várias vezes por noite, e caminho diversas vezes durante o dia em círculos à volta da fogueira, a cinza do cigarro dilata-se na minha mão que não serve para nada, nem para acariciar o rosto de uma flor, nem para poisar sobre o vento,
E ficas tão bonito quando desfazes a barba!, e digo-lhe que não sei, Não sei mãe, nunca me olho no espelho do quarto, tenho medo, e possivelmente deixe de desfazer a barba e cortar o cabelo,
Ser livre como as árvores de ramos ao vento, voar como os pássaros e poisar onde me apetecer, ser livre enquanto o meu rosto adormece na doce almofada da noite, e as minhas mãos chapinham nas ondas do mar, Fiquei desiludido, mãe!, a voz dela cansada Porquê, meu filho?, e as minhas palavras colam-se no silêncio da ténue luz do candeeiro, Li um poema de AL Berto em que ele dizia “o mar entra pela janela”, e noite após noite, Mãe!, nem o mar nem notícia boa,
Porquê, Mãe?,
Adormeço os meus lábios na doce almofada da noite, em vez de o mar entrar pela janela entram-me as ruas de Lisboa, o Tejo e os cacilheiros, Belém e o comboio para Cascais, os jardins e a ponte, os carros estacionados na peugada do engate e mangalas que faltam pela janela e se suicidam à porta de armas, e o sargento em pedacinhos de enjoo apanha os desperdícios que vacilam pela calçada, ao fundo o rio, E adormeço, mãe!, e quando acordo, Quando acordo, mãe, não existe Tejo, não existem cacilheiros, não existe Lisboa, O que existe, mãe?, apenas o cheiro dos bares de Cais de Sodré às cinco da manhã, e a pé até Belém acredito que amanhã está sol, E sabes, mãe?, vou à janela e não sol,
Nuvens penduradas no céu e vontade de fugir.

(texto de ficção)