domingo, 29 de setembro de 2024

A insígnia lágrima vestida de alegria

 

Trazias no olhar límpido a insígnia lágrima vestida de alegria

sentavas-te sobre mim e de longe ouvíamos as cansadas palavras

que migravam entre as madrugadas

mórbidas das manhãs sem marinheiro

galgando vales e campos aráveis como barcos em papel

subindo a montanha dos desejos às gargantas insolúveis da dor amanhecer,

 

Havia uma simples escada que terminava no segundo andar com vista para os lábios nocturnos

comendo morangos com pequenos cachos de brancas uvas...

trazias de mim a roupa pele em tonalidade de branco sujidade e sombras de torrado silencio...

mergulhávamos nos abraços que um velho esquisso transparecia através da luz da doente janela

com o coração salteando rochas de enxofre e ninguém conseguia pegar na tua doce lágrima

e fazer dela uma canção de amor ou... uma cancela com passaporte para a insónia,

 

Fazíamos as malas com os pedaços de tecido sobejantes das tempestades de areia

e sabias que na minha algibeira vivia um miserável humilhante verme com dentes em marfim

um transeunte em formato crocodilo que alguém trouxe de Angola...

e por engano vive

grita

ruge durante as noites de sexo sobre o tapete da casa de banho...

 

Trazias no olhar límpido a insígnia vergonha do corpo misturado em pequenos vidros

que desciam das nuvens embebidas em orgasmos vegetais das plantas de verniz...

escrevias nas paredes do alpendre palheiro as equações da eternidade

e um buraco de minhoca percorria-te o corpo sonolento dos soníferos de resina...

e inventavas noites a cada hora diurna...

como imagens desgovernadas a subir as escadas para o segundo andar onde habitava o nada

 

….

 

Ninguém percebe a tua boca quando se masturbam os teus lábios nas lágrimas do sofrimento...

confesso... e ninguém percebe as brechas de água que jorram dos teus lábios

confesso que a princípio pensei que eras uma lágrima voando sobre as escadas sem destino...

trazias... e gritavas... e rangiam os dentes em marfim dos esqueletos em flor

como tu e eu

dentro de um hipercubo apaixonado por rectas paralelas... fazendo o amor... algures no espaço vazio dos púbis em cacimbo quando mabecos e serpentes venenosas... derramavam sobre ti os uivos das sílabas das miseráveis algibeiras do mendigo com chapéu de bruma cor à tela desmaiada...

sábado, 28 de setembro de 2024

o lilás dos vidros oculares da lua

 

pedaços de carne

despedem-se de petroleiros em ruínas

vem o vento

e leva todas as gaivotas

para o mar da insónia

dentro do oceano da amargura

 

algas

solidões sem asas

e pássaros disfarçados de peixes voadores

e petroleiros

na saudade

em pedaços de carne

e sumo de vento

quando no final do dia regressa o pôr-do-sol

 

vem o lilás dos vidros oculares da lua

e oiço os teus olhos

em voos circunflexos até aos lábios de deus

e sei

vais ser feliz

 

dizem eles

(solidões sem asas

e pássaros disfarçados de peixes voadores)

dizem eles que a felicidade está nos lábios de deus

quando a noite desce ao mar da insónia.

O falso veneno

 

O falso veneno

que come as nossas falsas janelas

com falsos cortinados

com ruas de brincar

e casas de areia

 

o falso mar

na falsa maré

do longe falso horizonte

barcos de embalar

o falso oceano

 

o falso silêncio

nos falsos amores

em falsos lábios

alegres flores

 

o falso veneno

que a cobra da noite

deixa no falso prato do desejo

e alimenta o falso beijo.

amanhecer sem mamas de magnólia

 

as pequenas tábuas

sobre os teus olhos de amêndoa

prisão perpétua para o teu olhar

e para os teus lábios

(condeno os lábios da lua

à morte por enforcamento)

coitada da lua

coitada dela sem lábios

 

a morte desajeitada

à procura dos olhos da lua

luar

mar

onde está o mar?

Horizonte sem árvores

amanhecer sem mamas de magnólia

e hoje

 

hoje não amanheceu

 

e hoje ainda noite

sinto o silêncio da iluminação pública

sobre os lençóis da aldeia

 

ouves-me?

O mar

onde está o mar?

 

E hoje

precisamente hoje...

hoje não amanheceu em todas as calçadas

da aldeia

 

e perdi para sempre o mar

para sempre

não eternamente

para sempre as asas do mar

e as mamas de magnólia

nos cortinados da aldeia.

Algibeiras em lágrimas

 

Algibeiras

em lágrimas nos lençóis da tarde

ribeiras

em chamas no quarto do sótão

 

uivos e gritos de desejo

nos lábios da sombra sem palavras

quando da boca

uma flor louca

semeia um invisível beijo

 

algibeiras

em lágrimas nos lençóis da tarde

 

algibeiras

lareiras

eiras

em murmúrio

 

algibeiras

lareiras

freiras

em desejo

do beijo

quando cair a noite...

A porta de acesso ao sótão

 

A porta de acesso ao sótão

encerrada nos umbrais da madrugada

uma gaja nua

uma gaja nua brinca com um triciclo de madeira

num quintal inventado em Luanda

as mangueiras incham no silêncio das nuvens de algodão

e um líquido espesso cai sobre os gemidos imaginários da tarde

a gaja nua desenha sorrisos no espelho do sótão

 

(este gajo, eu, é completamente louco)

 

a porta

encerrada

com os gonzos soldados aos gemidos das noites de orvalho

e as dores de coluna das escadas de madeira

o reumatismo de sempre

os malditos bicos de papagaio

 

(este gajo)

 

a gaja nua escreve versos nas paredes de gesso

com fendas para a solidão do mar

(este gajo, eu, é completamente louco)

de gesso com fendas para a solidão do mar

(fico sem papel e para continuar recorro aos desperdícios

pedaços poisados sobre a secretária de madeira)

e eis que oiço a gaja nua

a dançar sobre a secretária de madeira

com pernas de marfim

e dentes de aço

e lábios de cereja

 

percebo que a realidade

aparece

desaparece

e esconde-se na algibeira da Primavera

 

encerrada

a pocilga sem número de polícia

com escadas e uma gaja nua

que dançam sobre a secretária de madeira lapidada.

à espera de que morram todos os sonhos

 

À espera que cessem

todos os segundos

minutos

e todas as horas de inferno

 

à espera de que morram todos os sonhos

todas as esperanças

à espera de que a palavra “acreditar”

se transforme em rocha

e o vento a leve para o mar

 

à espera que acorde a noite

e todos os segundos

minutos

e todas as horas de inferno

cessem de me atormentar.