quinta-feira, 19 de setembro de 2024

livros

 

livros

palavras em cadáver

sílabas dissecadas

vogais em putrefacção

consoantes esqueléticas

livros

poemas de amor

na “esquina da Gomes”

 

livros

livrarias

porcarias & casa de tias

palavras em cadáver

na senhora sua mão

 

livros & livrarias & mulheres nuas

casas de alterne

com as paredes forradas a livros

e cinzeiros de porcelana

 

livros...

e fui ficando a olhar os barcos imaginados

 

todos embarcaram na alvorada

excepto eu

que não quis partir

e fiquei a olhar os vidros vazios

nas árvores despidas

os cinzeiros recheados de teias de aranha

pedaços de tabaco

e asas de abelhas

cansadas do tédio

e avassaladas pelos sons dos livros

que durante a noite

em gritos minúsculos no jardim salpicam as árvores de mel

 

não quis partir

e fui ficando a olhar os barcos imaginados

nos sonhos da infância

num quintal infestado de mangueiras

e papagaios de papel

 

fui ficando

fui

excepto eu

ficando fui

e fui ficando a olhar os barcos imaginados

nos sonhos da infância

 

e nunca conseguir ler

as palavras que alguém escrevia

(durante a noite) nos céus de Luanda

… os barcos imaginados

e vómitos de saudade.

desistir de encontrar o mar

 

desistir

deixar tudo em suspenso

e partir

 

desistir

e partir

e não regressar

 

desistir

 

desistir de encontrar o mar.

as sílabas do teu olhar

 

amar-te

dentro das palavras

que me roubam as sílabas do teu olhar

amar-te

sem saber como o dizer

ou escrever

amar-te

dentro das palavras

e ouvir da tua voz

os silêncios do amanhecer

As palavras de escrever

 

De que me serve o calendário

se eu não tenho horário

relógio par acordar

amor para amar,

 

de que me serve o calendário

neste meu sonho imaginário,

de que me serve a madrugada

se no meu corpo cresce uma árvore cansada,

 

de que me serve a vida

nesta cidade nesta rua sem saída,

 

de que me serve o calendário

se a minha vida não é viver,

de que me serve o calendário

se em mim cessaram as palavras de escrever.

as orquídeas melancólicas da noite

 

O crocodilo de madeira

com alma de pássaro

trazendo nos dentes de marfim

as orquídeas melancólicas da noite

 

os livros de palha

com letras de néon

e o intenso cheiro a sexo barato

que a vida artística e nocturna

transforma em prazer

 

navegar como um marinheiro

de bebedeira em bebedeira

caminhando sobre a falsidade dos dias de fingir

até descobrir na voz das gaivotas o cio da maré

 

fugir da vida

e de todas as coisas belas

(odeio o belo)

e não regressar

ao deserto de amar

 

nunca mais

 

tristes

tristes os dias sem os livros invisíveis

que poisam sobre a claridade crepuscular

dos olhos do amor

não regressa o comboio com destino a Paris

e as luzes longínquas do silêncio

e flores de perfume incenso

inutilmente desfazem-se em poeira cor de amêndoa

 

nunca mais.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

A cidade dos livros

 

Qualquer coisa estranha à janela

olho as árvores imaginadas

por um miúdo em calções

olho-lhe os braços suspensos no cacimbo

e ele acena-me com um sorriso ténue

antes de adormecer a tarde

 

e enquanto me acena

vai imaginando árvores enormes quase a tocarem o céu

árvores que rompem a montanha

árvores que alguém esqueceu

num jardim de aldeia

ou perdidas numa cidade

sem janelas

sem portas

sem casas

uma cidade construída em papel

e com muitas palavras

a cidade dos livros

 

a cidade dos livros

com gajas poeticamente desejadas

e poeticamente amadas

como as flores dos jardins de Belém

 

uma cidade sem cigarros

 e sem rimas

e todas as personagens

 

coisas estranhas à janela.