quarta-feira, 18 de setembro de 2024

A boca em silêncios de pedras loiras

 

Uma chuva de pedras loiras

sobre as sombras cansadas dos invisíveis olhares da noite

vais partir em direcção ao nada

manhã desgovernada

cansada triste a paixão das palavras tontas

na tua doce mão,

 

cansada chuva de pedras loiras

em direcção ao nada

madrugada dos pincéis alimentados pelos desenhos dos espelhos coloridos

perdidamente apaixonados

dentro do cubo de vidro

onde adormecem os teus olhos meus,

 

uma chuva

longa

tonta

deserta

na tua doce mão

a boca em silêncios de pedras loiras.

Nos braços da ausência, voava

 

Voava dentro daquele espaço curvilíneo,

Nas paredes,

Construídas de vidro invisível,

Escondiam-se janelas,

Voava dentro daquele espaço,

De mão atadas,

De pernas atadas…

E sentia-me…

E sentia-me tão feliz,

 

Às vezes,

Às vezes vendia o cansaço

A troco de nada,

E voava,

Voava,

E só regressava…

Pela madrugada,

 

Voava dentro daquele espaço

Nauseabundo,

Infestado de pulgas,

Percevejos

Abelhas…

E agulhas mortas,

 

E voava…

Dançando sobre o vento,

Despia-me,

Vestia-me…

E quando acordava…

Agradecia a Deus…

Por estar vivo,

 

E eu voava,

Voava…

Nos braços da ausência.

Sorriso da manhã

 

Meu sorriso da manhã

Que trazes o mar aos meus lábios

Que afugentas os meus fantasmas

E me roubas o sono das noites de insónia,

 

Meu sorriso das estrelas sem nome

Que poisas no meu peito

Que entras no meu peito

Onde habita este meu pobre coração,

 

Meu sorriso

Das tristes e cinzentas manhãs,

Sorriso meu

Entre luares de Inverno

E esta vida de inferno,

No inferno de desejar

Que o mar

E o amar…

Sejam o teu sorriso da manhã.

Poetas que sofrem

 

Há estrelas que se suicidam,

Estrelas que se apagam no céu nocturno do desejo,

Há estrelas que nascem,

Que crescem…

Estrelas que morrem,

 

Há poetas que se matam

E morrem como as estrelas que se suicidam,

Poetas sem pão

E poetas com demasiado pão,

Poetas e estrelas e o silêncio…

E o silêncio da solidão,

 

Poetas que sofrem,

Que sofrem porque há estrelas que se suicidam…

Estrelas com lágrimas

E estrelas que desenham sorrisos,

Sorrisos no rosto dos poetas que se matam.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

A cidade dos lábios de mel

 

Morre a cidade

evapora-se a cidade nas mãos do velho Armindo

extingue-se a cidade na língua do tempo

quando da boca do desejo

morre a cidade

morre o beijo

morre a cidade com moinhos de vento

e ruas de papel

 

morre

a cidade dos lábios de mel

e olhos de mar

morre a cidade

as árvores

e todos os sonhos de sonhar.

Oração à noite

 

Peço à noite

Que deixe cair o luar nos teus lábios

E que às estrelas do teu olhar

As guarde junto ao peito,

 

Peço à noite

Que seja sempre a noite

Da noite que nos esconde

À noite de quando sentados junto ao rio…

 

E digo à noite

Que nos proteja de todas as noites

Das noites de poesia

Às noites em desejo.

Multidão

 

Acorrentados às frestas da manhã

O sono poisa na doce mão do transeunte ensonado

Vomita a fogueira da noite anterior

Da lareira onde arderam todas as palavras do poeta

E o poeta em dor

Sem o saber

Também ele acorrentado

Também ele ensonado

Também ele em lágrimas na fogueira da noite anterior

Senta-se na cadeira da insónia

E sonha

E pensa.

 

O que pensará o poeta acorrentado?

Que as noites são pedacinhos de pano

Em pequenas brincadeiras

Na algibeira do guarda-rios

Que enquanto olha para a ponte

Percebe que a multidão em fuga

Se dirige para o abismo?

 

Penso que não

Não pensando que a multidão

Toda ela

Toda a multidão

Se suicide nas mãos daquele Oceano.

 

Um cardume de sonhos

Viaja à velocidade da luz

Pensando que voa

Não voa

Porque enquanto pensava

O pensamento

Aquilo que o poeta pensava…

… morre quando a noite acorda.

 

E às vezes

Pensando que dormia no cacilheiro para a Trafaria

Acordava em Almada

Pensando que já era dia…

Quando ainda não era nada.

 

E para que pensas tu, poeta acorrentado?

Marinheiro das docas secas

Pedinte em decomposição

Quando do corpo putrefacto

Nasce uma gaivota de luz?

 

Não.

Não penses, cacilheiro dos lábios encarnados

Não penses

Não

Não bebas e não fumes e não fodas…

E claro

Não penses

Nem escrevas

O que pensas

Nem dias o que escrevas

E que pensas

Porque depois de pensares

Depois

Ai depois…

Não.

Não escrevas.

Não penses.

 

Multidão amiga

Pensante das madrugadas em flor

Consumidor de heroína

E de cigarros avulso

E de shots de liberdade

Junto ao rio

E se pensas

Um dia

Darás conta

Que os cacilheiros deixaram de ser os teus amigos…

Porque hoje os cacilheiros pensam

Porque hoje é terça-feira

E Lisboa é uma droga

É mulher

É bela

Muito bela

Mais bela que todas as belas das árvores da minha aldeia…

Porque pensa o poeta acorrentado?

Porque chora e pensa o poeta acorrentado

Filho da multidão

Irmão de Zeus

Irmão e pai

Dos que pensam

E daqueles que não pensam.

Amém.

 

A multidão pensante

Grita

Corta as correntes do sono

A multidão pensante

Pensa

Enquanto ele

O poeta acorrentado

Não pensa

Nem sabe o que pensa.

 

E os dias são as noites

Sãos os dias em que alguém pensa

Que quando regressar a noite

O pensamento se libertará da madrugada

E o poeta acorrentado

Enquanto bebe uísque…

… pensa

Que nunca pensou

Aquilo que pensa.

 

E se a multidão pensasse

E se o poeta acorrentado pertencesse à multidão

Os livros cresciam nos jardins

Como crescem as plantas de canábis

E crescem as almas que pensam.

Mas eu não gosto de pensar

Não gosto das palavras que escrevo

Nem dos desenhos que faço;

E enquanto espero sentado

Numa cadeira com tirinhas em plástico

Entretenho-me a contar as quadrículas

As brancas para o lado direito

As negras para o lado esquerdo…

… e os espaços entre elas…

Para os vizinhos que pensam

E que pensavam que nunca conseguiriam pensar.

 

O relógio morre.

A tua voz que pertencia aos meus pensamentos

Não pertence às vozes que pensam

Nem pensam as vozes a que pertencem…

E Deus?

O que pensará Deus!

O que pensará Deus de tudo isto?

Que sou louco

Porque desobedeço à multidão

E deixei de pensar?

E se eu pensar?

A multidão continuará junto a mim?

E claro,

E se Deus também ele,

Também eu,

Também o poeta engomado e acorrentado…

Não pensarem?

O que pensará o Diabo quando vai defecar

E percebe que o poeta acorrentado

É uma merda

Uma merda que pensa

Que fuma coisas

E bebe coisas

e…

… pensa

E que se fode o poeta que pensa.