Tenho escrito muito, mãe
Tenho lido muito, muito
mesmo, aproximadamente oitocentas páginas por semana
Reconheço que é
dispendioso
Ao preço a que está o combustível
É uma alta média
Olha
Tu é que estás bem
Nem te apercebes de como
está o custo de vida
Um exagero
Tenho escrito muito, mãe
Tenho corrido com os
falsos amigos
Leio muito, mãe
Não, mãe
Não estou só
Agora tenho outra família
E amam-me
Mas tenho escrito muito,
mãe
E lido muito, mãe
Sim, mãe
Os falsos amigos
As falsas palavras
As falsas janelas
E os falsos mares
E já agora, os falsos
poetas
Como eu, mãe
Como eu
Tenho escrito muito, mãe
Estou quase a terminar o
Prima Contradição de Júlio Pomar
Já tinha lido umas coisas
dele
E gosto muito
Tenho escrito muito, mãe
Tenho pincelado os lábios
da Cristina com estrelas de papel
Quase, mãe
Quase como os papagaios
que me construías
Em luanda
Só que os teus papagaios
voavam
E as minhas estrelas
São sonhos
Sonhos, mãe
Tenho escrito muito, mãe
Como chocolates como a
piquena do poema A Tabacaria
Do senhor Álvaro de Campos
E fumado muito, mãe
Como o Esteves da
Tabacaria
Tenho lido muito, mãe
Tenho escrito muito, mãe
E enquanto leio
A lareira abraça-me na
neblina cacimbo da saudade
Sim, mãe
O cacimbo sobre um
penhasco
O velho à procura dos cigarros
O avô Domingos a puxar os
machimbombos pelas ruas de Luanda
E eu
Leio
E escrevo
E o senhor Álvaro de
Campos
Fuma
E vai à janela
25/01/2024