sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

A garganta da morte

A solidão dói
A cabeça incha
O corpo mingua

Sobejam flores de saliva
Nos meus lábios de algodão
Afina-se um fio de luz na garganta da morte
Onde abelhas sem asas brincam com as nuvens de ontem
E na água silenciosa da manhã
Mergulha o rio da saudade

A solidão constrói sorrisos
Nos cortinados amarrotados do corredor sem portas
O teto desce até ao soalho

E a dor da solidão
Enrola-se à cabeça inchada
Suspensa no corpo invisível
Sem portas
Sem janelas
Ente o teto e o pavimento

O corpo minguado desfaz-se em poeira
E o vento a leva
E o mar a engole
Na garganta da morte

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

84,1 x 59,4 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Um círculo com olhos verdes

Nunca vi o mar,
A minha mãe sonâmbula nas noites de cacimbo desenhava o mar no teto da alcofa, um círculo com olhos verdes e sorrisos e cheiros que aprendi a distinguir antes de adormecer, e eu, e eu passava as tardes a olhar o mar, e eu passava as tardes a ouvir o mar que no canto esquerdo da alcofa batia contra as rochas imaginárias e quando a maré acordava e eu adormecia, o som melancólico e poético do mar entrava em mim e encharcava-me de luzes e de estrelas de papel,
- Porquê mãe,
De luzes e de estrelas de papel saltitando na areia finíssima da ilha do Mussulo, o meu filho pequeníssimo fitando o oceano invisível dentro da alcofa, o meu filho agarrado aos braços da mãe e olhar-me enquanto eu sentado numa cadeira de praia recordava as mangueiras no fim de tarde quando a Bedford amarela se imobilizava depois de caminhar de musseque em musseque, eu chegava a casa, eu chegava a casa e ele deitado a brincar com o mar,
- É tão pequenino Segredava ele para a enfermeira na primeira visita que me fez quando eu misturado com outros pequeninos e de etiqueta no pé para não me ausentar e perder nas ruas de Luanda,
E hoje pergunto-me,
- Nunca vi o mar,
E hoje pergunto-me, A minha mãe sonâmbula nas noites de cacimbo desenhava o mar no teto da alcofa, um círculo com olhos verdes e sorrisos e cheiros que aprendi a distinguir antes de adormecer, e hoje pergunto-me a razão de uma etiqueta suspensa no pé minúsculo, ele de olhos abertos e agarrado aos meus braços fingia que olhava o mar mas eu sabia que não, hoje sei que ela desenhava o mar na alcofa para que eu mais tarde, muitos anos passados, percorra as ruas de Luanda em busca do mar,
- Porquê mãe,
E nunca vi o mar, Um círculo com olhos verdes e sorrisos e cheiros que aprendi a distinguir antes de adormecer, e eu, e eu passava as tardes a olhar o mar, e eu passava as tardes a ouvir o mar que no canto esquerdo da alcofa batia contra as rochas imaginárias e quando a maré acordava e eu adormecia, o som melancólico e poético do mar entrava em mim e encharcava-me de luzes e de estrelas de papel,
- A Bedford amarela para não se perder nas ruas de Luanda, uma etiqueta suspensa no pé minúsculo, eu sentado numa cadeira de praia a ouvir a sombra das mangueiras que batia contra os domingos entre conversas e meia dúzia de Cucas,
As palmeiras murchavam e desciam até à marginal, e ele agarrado ao meu pescoço sonhava com triciclos e papagaios de papel dançando no céu, e adormeci com ele ao meu colo, e ele caiu e quando aterrou no pavimento ouvi-lhe as primeiras palavras,
- Mãe O mar é tão lindo,
Os domingos entre conversas e meia dúzia de Cucas, será que alguém vai ler esta porcaria,
- Pergunto-me Porquê mãe,
Será que alguém vai ler esta porcaria quando as mangueiras desciam até ao capim e as pombas sobre um triciclo de madeira,
- Voavam,
A Bedford amarela estacionada junto ao portão do quintal e ao longe o avô Domingos de braços abertos e me abraçava e me pegava ao colo, eu pendurado no seu pescoço com um olho a ver o mar no teto da alcofa e com o outro a contar os carros em direção ao Grafanil, Catete, Bairro Madame Berman,
Um cavalo branco saltitava e pegava em mim e me levava a ver o mar,
- Mãe O mar é tão lindo,
A minha mãe sonâmbula nas noites de cacimbo e eu tombei e quando aterrei no pavimento,
- Mãe O mar é tão lindo,
Ele sentado numa cadeira de praia a imaginar domingos e conversas entre meia dúzia de Cucas,
- Tão pequenino ele,
Um círculo com olhos verdes e sorrisos e cheiros que aprendi a distinguir antes de adormecer…

(texto de ficção)

O abraço da noite


59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Sabes que estou aqui
Entre a janela e o mar
Sou uma rocha que não se cansa de sonhar
Sou um pássaro que não desiste de voar
Sabes que estou aqui
Entre a janela e o mar

Sempre pronto para te escutar
Sempre pronto para te abraçar
Sabes que estou aqui
Entre a janela e o mar

Porque sou a noite abraçada ao luar