Vou sonhando, vou, dentro das águas milenares que
da fonte da inocência brotam, deixei de procurar-te, tal como deixei
de me importar com o sal que a água transporta, e às escondidas, e
Vou
E sem saber que a vizinha que eu pensava existir
apenas no espelho do guarda-fato, porque era naquele lugar que eu a
encontrava todos os dias, hoje
Bateu-me à porta,
Procurou-me, e deixei de a procurar, desisti dos
cabelos negros com olhos castanhos e pele cor de chocolate,
bateram-me à porta, preparei-me para abrir, e ela parecendo uma rosa
descida do pedestal do silêncio, murmurou-me, gritou-me,
infernizou-me a paciência
O vizinho por acaso tem sal que me empreste?
Respondi-lhe que não, que o único sal que disponho é o que
transporta a água, e que me desculpasse mas estou com pressa, vou
sair, preciso de sair desta casa
O vizinho é mesmo um rabugento e mal educado,
Pois sou, claro que sou, mas não fui eu que lhe
bati à porta a pedir sal, fui?
É por essas e por outras que vai morrer só, E
passei-me, e respondi-lhe deselegantemente que o facto de estar só
não quer dizer que esteja só,
Ela
Não percebi,
Eu
Também não é para a senhora perceber e
desculpe-me mas tenho de encerrar a porta, vá ao vizinho do segundo
esquerdo, parece que esse tem sempre tudo,
Ele é o colesterol, ele é bicos de papagaio, ele é
a próstata, ele é o esqueleto empenado..., talvez tenha sal, quem
sabe?
Ela nunca me gramou, sempre me desculpou nas minha
aventuras, mas eu sabia que fingia, e nunca me perdoou as fendas que
deixei nas paredes da vida, ela nunca percebeu que eu apenas tenho
alguns cachimbos e uns tantos livros, nada mais, e no entanto,
bastantes CDS, considero-me um barco feliz, tenho asas, voo sobre os
telhados das aldeias de zinco, quando quero, puxo da âncora e
estaciono num qualquer banco de jardim,
“Cuidado, pintado de fresco”,
E quando percebo, zás..., o casco recheado de
listras encarnadas, como um prisioneiro abandonado no cais do
inferno, quando o rio se transforma em absorto desejo das entranhas
algibeiras de prata, das mãos, incham os dedos coloridos com sabor a
limão, e erguem-se-lhe do ventre as flores mortas que as noites se
poisam nos seios de oiro clandestino,
Ouvia-te permaneceres sentada nas árvores anãs do
jardim do sétimo andar direito, e um desejo de vidro sinto-o
apaixonado pela janela que o homem de xisto e a mulher de socalco,
deixaram embalsamada como as casas em ruínas da minha alegre vida,
As paredes de gesso, fendilhadas raízes sobre a
terra queimada, o azul regressou hoje a casa, na boca trazia a dor de
mais um dia passado em branco, junto a uma parede de cimento, vestido
de preto, com um lindo chapéu de abas largas, o azul entranha-se-lhe
no púbis como o mar quando sobe as escadas do abismo e desaparece
entre telhas de vidro e chapas de miniatura com mistura de chocolate
e amêndoa, e
Nunca vi uma mulher sentada sobre o mar, mas não
invalida que não exista uma, uma apenas, porque também nunca tive o
prazer de olhar um protão e ele existe
Vive nas recordações que a terra engole todas as
quintas-feiras ao meio-dia, e como barco que era, fazia-se ao mar,
tapava os ouvidos para não ouvir os lamentos da vizinha, porque
Umas vezes era o sal, outras, outras a salsa,
outras, insignificâncias com as palavras que ele escrevia,
“Porque o que ela quer é peso”, o
insignificante Alberto a preencher-me os ouvidos, e eu respondia-lhe
És parvo pá, ela é doida, só isso, nada mais do que isso,
E escrevia, escrevia as parvoíces do dia como se
fossem histórias de encantar, e de encantar, de encantar apenas os
sons do relógio da torre da Igreja, vou sonhando, vou, dentro das
águas milenares que da fonte da inocência brotam, deixei de
procurar-te, tal como deixei de me importar com o sal que a água
transporta, e às escondidas, e
Vou
E sem saber que a vizinha que eu pensava existir
apenas no espelho do guarda-fato, porque era naquele lugar que eu a
encontrava todos os dias, hoje
Bateu-me à porta,
E hoje descobri que vou...
(ficção não revisto)
Francisco Luís Fontinha