quarta-feira, 28 de agosto de 2024

há muito que não te escrevo. hoje lembrei-me de ti, rectifico, quase todos os dias me lembro de ti, e espero que me entendas o quão difícil é recordar-te, recordar o teu último sorriso que desenhaste na minha mão. digo-te já que não tenho feito muitas coisas úteis, coisas que os outros gostavam que eu fizesse,

mas eu, mãe,

eu nunca as farei; porquê?

não o sei, mas nunca, nunca as farei.

 

deixei de te ir visitar ao cemitério e de te pôr flores. vou lá esporadicamente, muito pouco

já não suportava aquilo, que era um martírio para mim. deixei de te mandar rezar missas, missas pela vossa alma, mas que alma? não acredito em alma, em nada, após a morte.

morremos e pronto.

se eu tivesse alma, acredita, mãe, já a tinha vendido ao vizinho que tem um burro. para que eu queria uma alma?

 

já quase não me apetece sair de casa. fico a ler ou a escrever. olha, leio mais de mil páginas por mês, e não me sinto cansado, nem farto de ler. Estou a ler toda a obra de louise gluck e cada vez mais gosto de poesia. é uma paixão.

trabalho, casa, casa, trabalho. vou com a cristina às compras, que confesso, está a ser uma experiência agradável, que é uma seca, é. vocês mulheres gostam de comparar os preços, porque este é mais barato do que aquele, porque isto, porque aquilo…, porque aquele é melhor do que este, e para mim, mãe, é tudo arroz, ou feijão, ou grão. sois umas chatas.

mas gosto.

 

daqui a pouco é inverno novamente e recordo a primeira parvoíce que fiz quando cheguei a alijó. tinhas uma braseira na sala, tinha nevado, e eu estupidamente enchi uma caixa de sapatos vazia com neve e deitei-a na braseira.

nunca tinha visto neve, e tão pouco, sabia o que era uma braseira.

e acredita, mãe, hoje dava todo o pouco que tenho para novamente na tua frente lançar sobre a tua braseira

uma caixa de sapatos cheia de neve.

 

e dizias-me para eu acreditar e nunca desistir!


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